“Sem cultura, a educação não se fixa”
Por Ana Paula AcauanParte do imaginário brasileiro, ela já foi Dora (a escritora de cartas para analfabetos em Central do Brasil), Dona Picucha (a velha espoleta de Doce de Mãe), Charlô (em uma dupla insuperável com Paulo Autran, em Guerra dos Sexos), Tránsito Ariza (do eterno Amor nos Tempos do Cólera) e tantas outras personagens em sete décadas e meia de carreira. Uma das mais prestigiadas atrizes das artes cênicas do país, Fernanda Montenegro, fez parte das comemorações dos 70 anos da PUCRS. Premiada com Emmy Internacional, indicada ao Oscar e com dezenas de outros reconhecimentos, a atriz recebeu o Mérito Cultural da PUCRS, às vésperas de completar 89 anos. Ao comentar sobre o papel da arte em tempos turbulentos, avaliou: “Sem cultura, a educação não se fixa”.
Por telefone, ao diretor do Instituto de Cultura, Ricardo Barberena, a atriz agradeceu pela lembrança do seu nome. “Temos uma profissão, até poderia dizer sadiamente, marginal. O palco é um espaço absoluto do ser humano, para o bem e para o mal. A dramaturgia só existe diante da crise de uma história, da crise de uma pessoa com outra. Fico muito comovida, estou com o coração cheio de emoção.”
Na sua vinda à Universidade, compartilhou com a comunidade a leitura dramática de Nelson Rodrigues por ele mesmo e lançou o Itinerário fotobiográfico, livro pelas Edições Sesc-SP. Segundo Fernanda, o dramaturgo, apesar de ter endossado o “período militaresco do Brasil”, fez “uma obra física e carnalmente entregue à experiência do humano no que ele tem de melhor, na medida em que se autoespecula”. Alguns dias antes do evento, Fernanda concedeu entrevista à Revista PUCRS.
Qual é o seu sentimento com o Mérito Cultural da PUCRS, depois de tantas homenagens já recebidas ao longo da carreira?
Acho lindo a gente provocar grupos, presenças. Num tempo de tanto botão, só pode me fazer feliz o ser humano ainda se encontrar com o outro numa ação de um reconhecimento que me comove muito.
Qual o papel da arte em tempos tão turbulentos e instáveis?
Só existe tempo turbulento porque não tem arte. A arte sumiu. Existe o desmonte administrativo dos últimos governos. Passou a ser apenas uma distribuição de verbas dentro de uma lei. Sem cultura, a educação não se fixa. A educação é um esqueleto. O que dá a dimensão dele, a carnadura, é a cultura. Houve um desmonte. Objetivaram apenas o processo esquelético. Ao fim de cada governo, parece que ninguém fez nada antes. “Ah, no tempo daquele governo, era ótimo.” “Ah, quando tinha o outro era bom.” Por que não se acrescentou? Isso também ocorre em outras áreas. Coitado do Brasil se entra algo que não está de acordo com o poder político que acabou de acontecer. Não temos cultura. Então não somos um país. Somos o quê? Uma fronteira. A cultura popular se expressa, vem do canto, da dança de uma região, como se a outra cultura fosse impopular. Há uma desconexão completa em termos de educação e cultura. Por isso estamos nessa situação.
Um fato a lamentar é a destruição do Museu Nacional.
Isso é um símbolo de uma não nação. Eu frequentei o Museu. O meu 5º ano primário foi feito dentro da porta da Quinta. Era uma herança absoluta. Veja bem, neste momento, incendiou-se. Nem incendiaram, tal a indignação, tal o abandono. Não tem volta. Podem reconstruir as paredes, buscar uma proposta dita de reconstrução, mas o que foi foi. E fomos juntos como país.
O que de melhor o público pode ler e ver no seu itinerário fotobiográfico? Qual a sua principal motivação para revisitar o seu passado em imagens?
É um fim de uma era. Falo como atriz. O ator não tem lugar na história dos homens. Somos feitos da matéria do sonho, como diz Shakespeare, embora, segundo ele, o mundo é um palco e somos todos atores. E quando falou isso tenho certeza de que avaliou a marginalidade do nosso processo artístico, porque nós não somos uma entidade cultural, que é o autor, o cenógrafo, o diretor, o que monta o processo. Sem o bicho ator, em pé, vertical em cena, a humanidade não se faz nessa expressão. Venho de um processo de trabalho cultural, teatral em cima do ator, a partir de João Caetano, em 1830, que foi o primeiro que se propôs a dar a presença cênica do brasileiro para sua plateia. Até o momento em que fez sua companhia, com colegas brasileiros, tudo era português, na medida em que o Império fez do Rio a capital de seu poder absoluto no mundo. Isso veio até minha geração. Estamos numa época de ciência e tecnologia. Tudo é feito através de um botão, de uma música eletrônica. Eu achei esse material todo. O Sesc de São Paulo, na figura do professor Danilo Miranda, entendeu o que sobrou desses anos em cima de um palco. Busco trazer a crise dramática para a sensibilização de um espectador.
Teatro profissional volta à Universidade
A apresentação da peça Caio do céu marcou o retorno do teatro profissional à Universidade, que contava até o início dos anos 2000 com o projeto PUCRS em Cena. A plateia se emocionou com a encenação de Deborah Finocchiaro e Gustavo Petry, aplaudindo de pé o espetáculo no final. Na comemoração do 70º aniversário de Caio Fernando Abreu, a obra, dirigida por Luís Artur Nunes, levou um pouco do universo do escritor gaúcho ao palco. O roteiro é recheado com seus contos, crônicas, poemas e trechos de cartas.
A peça fez parte da Semana de Letras e Escrita Criativa da Escola de Humanidades. O ingresso solidário garantiu a arrecadação de mais de 400 quilos de alimentos não perecíveis a serem distribuídos a entidades pelo Centro de Pastoral e Solidariedade. O espetáculo foi seguido de um debate mediado pelo diretor do Instituto de Cultura, Ricardo Barberena, com especialistas e estudiosos da obra de Caio.
Obra inspirada nos objetos de Caio F. |
Ricardo Barberena organiza o livro O que resta das coisas, com contos inspirados nos objetos de Caio F. Abreu. Será lançado pela Editora Zouk na Feira do Livro de Porto Alegre. As relíquias do escritor estão guardadas no Delfos – Espaço de Documentação e Memória Cultural da Universidade. Barberena selecionou alguns dos itens, como máquina de escrever, bandana, boina, troféu Jabuti, fitas cassete, runas, tarô, fotografias, cartas e diários, e propôs a 25 escritores que se inspirassem neles. Entre os autores estão Altair Martins, Cíntia Moscovich, Verônica Stigger, Marcelino Freire, João Anzanello Carrascoza e Ricardo Lísias. |
Parceria de peso
O Instituto de Cultura e a Fundação Theatro São Pedro são parceiros na promoção de espetáculos artísticos e eventos variados, movimentando a cena cultural de Porto Alegre. Pelo intercâmbio, a partir de outubro, alunos da PUCRS poderão fazer oficinas gratuitas com artistas da Companhias Stravaganza e Incomode- Te, Coletivo Errática e Grupo Cerco, integrantes da programação do TSP que valoriza os grupos locais – Teatro Hoje.
Colegas na Escola de Humanidades, o diretor do Instituto, Ricardo Barberena, e o presidente da Fundação, Antonio Hohlfeldt, que também leciona na Famecos, trataram sobre a aproximação das instituições visando atrair os dois públicos para as atrações. A parceria se chama Multipalco 360°, em referência ao espaço do TSP e ao movimento PUCRS 360° de transformação da Universidade.
Na primeira atividade conjunta, a PUCRS levou ao Multipalco o documentário Minha Avó Era Palhaço, sobre a primeira palhaço negra do Brasil, Maria Eliza Alves dos Reis, que atuou nas décadas de 1940 a 1960. Após, houve debate com Daise Gabriel, filha da artista, e Marina Gabriel, neta e uma das diretoras do filme.
PRIMAVERA LITERÁRIA BRASILEIRA
Em outubro, será realizado o evento Primavera Literária Brasileira, com grandes nomes da poesia brasileira. Jornada, performances, debates, leituras, oficinas itinerantes, noitada e sessões de autógrafos ocorrerão entre os dias 19 e 22, no auditório do prédio 7. No dia 20, o evento será expandido, com oficinas no Theatro São Pedro, no Fora da Asa e na Livraria Aldeia. Além de poetas de vários estados, participarão três convidados do exterior. No dia 22, haverá bate-papos com os escritores Alejandro Zambra (espanhol) – às 14h – e Abdellah Taïa (marroquino radicado em Paris) – às 16h. Barberena e o escritor Reginaldo Pujol Filho coordenarão a primeira conversa. A segunda mesa terá como mediadores o professor da Sorbonne Leonardo Tonus (brasileiro que criou A Primavera Literária na Europa) e a gaúcha Natalia Polesso. A partir das 19h30 do mesmo dia, Zambra estará no Fronteiras do Pensamento ao lado do escritor espanhol Javier Cercas, no Salão de Atos da UFRGS.
As DramaturgA
Será lançada no dia 17 de novembro, na Feira do Livro, a coleção As DramaturgA, pela Edipucrs, com 13 volumes de 13 autoras de teatro do RS, coordenada por Hohlfeldt e organizada por Natasha Centenaro, Fernanda Moreno e Patrícia Silveira. Nos dias 17 e 18, haverá leituras dramáticas no Multipalco.
Saiba mais |
Confira a programação completa do Instituto de Cultura em http://www.pucrs.br/pucrs-cultura. |