Resistência na luta pela moradia
Moradores da Ocupação 20 de Novembro contam com apoio do grupo de pesquisa Sustenfau, da Arquitetura e Urbanismo
“O amanhecer da cidade grande me dói.” Pela poesia, Iolanda Rodrigues, 66 anos, se expressa. Acorda às 5h e desce até o pátio do prédio da Rua Barros Cassal para se sentir como se estivesse na zona rural. A sensação dura até 7h30, quando a Capital desperta. Deixou Santana do Livramento, onde nasceu, aos 35, e há quase uma década se engajou na luta pela moradia. “A Europa tem leis para prédios públicos como esse. Sou um pingo nisso tudo, mas escolhi ações não individualistas. Precisamos sobreviver e resistir.” Com “motorista na porta”, consegue se deslocar para todo lado de ônibus. Outra moradora da Ocupação 20 de Novembro leva o filho a pé ao Hospital Presidente Vargas. “Que privilégio poder ir andando.”
“As pessoas têm déficit de cidade e não de moradia”, interpreta o professor Marcos Diligenti, coordenador do Grupo de Pesquisa em Habitação de Interesse Social e Sustentabilidade (Sustenfau), do curso de Arquitetura e Urbanismo da Escola Politécnica. Estudantes de graduação em Arquitetura, Serviço Social e Direito e de pós-graduação em Serviço Social discutem essas questões envolvendo a cidade e o direito à moradia. Além de um palco de estudos, a Ocupação 20 de Novembro recebe apoio do Sustenfau nas manifestações, nas reuniões com os militantes e nas discussões sobre o projeto de reforma do prédio.
EXEMPLO EMBLEMÁTICO
A comunidade se tornou um símbolo dos movimentos sociais. O nome tem vinculação com o Dia da Consciência Negra e a data da ocupação inicial do prédio da Rua Caldas Júnior, atual Saraí, em 2006. “O assentamento é emblemático, exemplificando a apropriação de um vazio urbano como ação de resistência contra-hegemônica à financeirização do hábitat, aliada à emergência de um significativo protagonismo das camadas populares no exercício de sua cidadania”, avalia Diligenti.
O arquiteto Tiago de Campos, que integra o Sustenfau e viu na cooperativa uma opção de vida para a própria família, concorda: “É um foco de resistência diante da especulação imobiliária. Mostra uma história de sofrimento”. Sua mãe vai residir no local. “Como a Caixa Econômica Federal exige que o público seja misto e faltava uma mãe com filhos, eu ofereci, pois ela não tem casa e é empregada doméstica.” Tiago foi bolsista do Programa Universidade para Todos (ProUni).
Com a reforma, o prédio terá 40 apartamentos, uma horta pública no terraço e projetos para geração de renda, como cozinha industrial (o grupo tem um serviço de alimentação para eventos), espaço cultural e área de reciclagem. A ciranda, com atividades para as crianças oferecidas pela UFRGS, será reformulada. A recuperação tem apoio do Sindicato dos Arquitetos do Rio Grande do Sul, o que vai viabilizar a colocação de placas solares e cisternas.
“A presença da Universidade dá concretude às nossas ações. O grupo nos ajudará na avaliação e no diagnóstico do que é possível fazer”, afirma a coordenadora da 20 de Novembro, Ceniriani Vargas da Silva. A ideia é produzir energia para os espaços de uso coletivo, reduzindo os custos e garantindo a permanência das famílias.
Assina o projeto o escritório AH! Arquitetura Humana, composto pelos arquitetos e urbanistas Paola Maia, Taiane Beduschi e Franthesco Spautz, formados na PUCRS, e por Karla Moroso. A própria cooperativa gerencia a verba da revitalização. A comunidade decide sobre o empreendimento. “Esse é um caso de êxito”, sublinha Diligenti, lembrando que quase a totalidade do Minha Casa, Minha Vida teve o fomento direcionado para incorporadoras imobiliárias. “Isso não resolve o problema habitacional. No Brasil, há 1 milhão de imóveis ociosos a mais do que a necessidade. O problema é que colocam essas populações em zonas periféricas, sem acesso a equipamentos urbanos.” Como consequência, uma série de moradias está abandonada.
Integração entre áreas
Todos os participantes do Sustenfau contam com bolsa: CNPq, Fapergs e Programa de Apoio à Integração entre as Áreas – Praias/PUCRS. Isadora Teodoro, 28, no 7º semestre de Arquitetura, está há cinco anos no Sustenfau e é bolsista do Praias. Recebeu destaque em Ciências Sociais Aplicadas no Salão de Iniciação Científica da PUCRS de 2014, ao analisar a ocupação dos vazios urbanos no Centro para fins de moradia. “Não consigo mais sair do grupo. Na graduação nunca pensei em vivenciar isso de uma forma tão abrangente e forte”, destaca ela, que tem bolsa do ProUni. Depois de acompanhar a luta dos moradores da Saraí e da 20 de Novembro, Isadora agora está feliz de ver o desfecho na Barros Cassal.
Mariana Guarda, do 6º semestre de Serviço Social, também do Praias, está aprendendo muito no diálogo com a Arquitetura e Urbanismo, na medida em que é necessário pensar em projetos para a cidade diante da falta de moradias. “A gente estabelece vínculos com as pessoas, auxilia na sua organização e na reivindicação de seus direitos.”
FUNÇÃO SOCIAL
Cada propriedade deve cumprir uma função social. Se isso não ocorre, as medidas vão desde a notificação do proprietário, a cobrança de IPTU progressivo e a expropriação do imóvel, com pagamento com títulos da dívida pública. “Mas há muitas brechas que fazem com que não sejam cumpridas”, afirma Diligenti, citando as exigências de que o oficial de justiça entregue pessoalmente o documento e de que os planos diretores prevejam essas regras.
A tese de doutorado de Manoela Munhoz, que faz parte do grupo, trata da construção social das subjetividades na ocupação urbana. A dissertação de mestrado de Ariely de Castro aborda o impacto das políticas neoliberais nas cidades brasileiras.
Professor do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social com a disciplina Território e Cidade, Diligenti coordenará, a partir do segundo semestre, o Grupo de Estudos Lefebvrianos sobre a obra de Henri Lefebvre.
“Mãe, na outra casa não tinha vizinho?” |
Maria Carolina Bittencourt está há um ano na Ocupação 20 de Novembro. Fazia parte da Saraí e viveu de aluguel social de 2014 a 2017. A filha Maria Flor sentiu a diferença. “Ela me perguntou quando nos mudamos para cá: ‘Mãe, na outra casa não tinha vizinho?’. Não eram nossos amigos como aqui. Cada um vivia na sua gaveta.” Uma das aliadas nessa trajetória é Lúcia Soares, que já estrelou filmes como O teto sobre nós e O fantasma da Saraí e começou nos movimentos pró-mulheres. “É um companheirismo muito grande. A gente não pode parar”, diz ela, que vai todos os dias caminhando ao Hospital Presidente Vargas, onde vende pastéis. |
A cronologia de uma saga
A prefeitura aprovou projeto da sede da Associação dos Funcionários da Viação Férrea do Rio Grande do Sul e de um hospital. Apenas o prédio paralelo à Av. Farrapos foi concluído. Abriga até hoje a associação. O outro edifício, na Barros Cassal, 161, ficou desocupado.
O edifício da Av. Farrapos foi concedido à associação, e o Hospital inacabado ficou a cargo da Superintendência do Patrimônio da União.
A partir do Movimento Nacional de Luta pela Moradia, um grupo se fixou no prédio da Rua Caldas Júnior, 11, em 20 de novembro de 2006, sendo chamado de Ocupação Saraí, em homenagem a uma falecida militante da luta pela moradia. Permaneceu no local até março de 2007, quando, por meio de reintegração de posse, foi realocado para um terreno na Av. Padre Cacique, em condições precárias. Outras famílias continuaram na Caldas Júnior, que hoje está em fase de reintegração de posse.
Em função das obras da Copa, o grupo seria novamente retirado do terreno próximo ao Beira-Rio. O governo ofereceu um bônus-moradia de R$ 52 mil por família, para a aquisição de uma casa ou a inclusão da comunidade no Minha Casa, Minha Vida. O grupo reivindicou a transferência para a Barros Cassal.
Em março, a escritura do imóvel da Barros Cassal foi lavrada em nome da Cooperativa 20 de Novembro. Um mês depois, houve assinatura da documentação referente às obras de requalificação do edifício, inseridas no Minha Casa, Minha Vida – Entidades.
O grupo aguarda a liberação do início das obras, enquanto negocia com a prefeitura a concessão de aluguel social para as famílias no período em que durar a reforma.
FONTE: ARTIGO DOS PROFESSORES MARCOS DILIGENTI E MARIA ALICE DIAS E DA ESTUDANTE ISADORA TEODORO, NA REVISTA TEXTOS & CONTEXTOS (PORTO ALEGRE), E CENIRIANI VARGAS DA SILVA.