Os contrastes da indústria do lixo
Por Ana Paula AcauanEnquanto a indústria que transforma o lixo só cresce e lucra, os catadores têm uma renda familiar menor do que um salário mínimo, vivem em áreas de risco, muitas vezes trabalham em lugares insalubres e mais de 80% precisam levar junto os filhos. Entre suas principais demandas está a coleta solidária, sistema pelo qual, através de contrato com a prefeitura, eles podem recolher papéis e embalagens plásticas diretamente nas residências. A meta vai mais longe: querem preparar os materiais para a industrialização, quando atingem maior valor, o que chamam de reciclagem popular.
Em 2016, esse setor da economia rendeu, em Porto Alegre, R$ 60 milhões. A coleta também evita o gasto de um expressivo volume de recursos, o que, na Capital, naquele ano, foi de R$ 14 milhões. Quando se fala em ganhos ambientais, os números seguem impressionantes. São 995.290 árvores não cortadas em 365 dias. Isso que a crise afeta a produção de lixo e se recicla menos de dois terços do potencial. Os dados são de pesquisa realizada pelo Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais, Direitos e Políticas Sociais (Movidos), do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social.
“Essa indústria gera ganhos significativos que não chegam aos catadores”, destaca a coordenadora da pesquisa e líder do Movidos, assistente social Mari Aparecida Bortoli, que faz estágio pós-doutoral na PUCRS. O objetivo do estudo é entender as condições dos trabalhadores em Porto Alegre. Mari cita que as demandas por saúde e assistência social são grandes, pois muitos não utilizam equipamentos de segurança. A maioria recebe auxílios permanentes ou eventuais em programas sociais. Alguns integram grupos sobre autogestão, cooperativas e economia financeira. Mas grande parte tem acesso restrito a informações.
FIM DOS LIXÕES
A Política Nacional de Resíduos Sólidos, que surgiu com lei aprovada em 2010, prevê o fim dos lixões. O que parece ser uma boa notícia acaba por dificultar o dia a dia dos catadores, que ganhavam mais no modelo anterior. Mari lembra que a iniciativa, influenciada pelo Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial, exige que as prefeituras invistam em galpões, equipando-os com prensas, esteiras, mesas e computadores, o que nem sempre ocorre.
O estudo também analisa programas do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), apontando que não se relacionam com as demandas dos trabalhadores. “Existem, por exemplo, iniciativas que querem transformar o lixo em artesanato, realidade distante da maioria”, exemplifica.
Nova etapa envolverá entrevistas com associados das 17 unidades de triagem que têm convênio com o DMLU. Durante a coleta de dados, a equipe procura instruir os trabalhadores sobre as consequências sociais, ambientais e econômicas da atividade.
Participam da pesquisa os professores Carlos Nelson dos Reis e Jane Prates, a doutoranda Heloísa Teles e as estudantes de Serviço Social Mariany do Prado e Victória Chaves, que contam com bolsa BPA/PUCRS. Da graduação, já fez parte Taís Miranda.
Uma vida melhor para a família
Maria Tugira Cardoso, da Associação de Catadores de Lixo Amigos da Natureza, de Uruguaiana, foi homenageada no Seminário Defesa de Direitos – Catadoras e Catadores na Resistência, realizado na PUCRS. Há 38 anos na ocupação, ela participa do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis desde sua criação, em 2000. Criou os sete filhos indo para o lixão buscar material reciclável. Lutou para que os 22 netos e o bisneto tenham melhores condições de vida.
Representante do Rio Grande do Sul na comissão nacional do movimento, Tugira é crítica da Política Nacional de Resíduos Sólidos. Prevê que as prefeituras contratem os catadores sem licitação, mas não há obrigação legal. Os grandes geradores de resíduos vendem eles mesmos os materiais. Uma das vantagens em Uruguaiana é que a associação possui um caminhão e 20 carrinhos que fazem a coleta em dez bairros. São 52 trabalhadores.
Vislumbrando o futuro
Melania Marli Menezes ia da Vila Cai-Cai, na beira do Guaíba, até o Centro buscar papel para reciclar. Os moradores foram então removidos para o Bairro Cavalhada e formaram a Ascat – Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis do Loteamento Cavalhada. Dos quatro filhos, uma trabalha com ela no galpão de reciclagem. “O catador se acha inferior aos outros. Mas aprende na prática. Tem mais experiência do que qualquer doutor.”
A prefeitura entrega para a Ascat de 4 a 6 toneladas por dia, mas os cooperados querem recolher o material nas casas. “Do que recebemos, 60% é lixo orgânico. Vêm madeira, caliça e pedra: tudo misturado”, aponta Melania. Esse sonho começa a virar realidade.
A Ascat foi escolhida, em um fórum de catadores, para concretizar um projeto piloto mediante contrato com o DMLU. A entrega da primeira proposta foi em 2010. A ideia é que a cooperativa se responsabilize por dois bairros – Tristeza e Assunção. De lá para cá, enquanto o assunto fica restrito às discussões de gabinete, o pessoal adquiriu um caminhão (por meio da União Europeia) e faz a coleta em quatro condomínios, de duas a três vezes por semana. Cada carga rende até 1,2 mil quilos, mas a vantagem é diminuir o rejeito (o índice fica em 40%). Hoje são 21 pessoas atuando no local.
“A reciclagem sangra”
A responsabilidade ambiental rende slogans e reputação para muitas empresas, mas quem vive como catador pode lamentar: “A reciclagem sangra”. Mais novo estudante de Ciências Sociais da UFRGS, com ingresso pelas cotas sociais, aos 38 anos, Alex Cardoso compara a atividade às mais exploradas da humanidade, como mineração e extração da borracha no seringal. Em uma realidade de exclusão, cursar uma faculdade não faz parte das aspirações. “Quando chegamos em um espaço, somos vistos como mendigos. Começamos a ter valor depois que falamos, mas ainda nos diferenciam. Dizemos: ‘Eu sou da faculdade da vida’, como se isso respondesse muita coisa. Esse conceito não foi inventado por nossa gente, foi pela outra, para não estudarmos. Basta para que, para quem? Ser doutor é um sonho para todo mundo. A gente não avança porque a vida é dura.”
Da equipe de articulação do movimento nacional e participando da gestão de resíduos em estádios no norte do País, pela Confederação Brasileira de Futebol, está de olho no mercado mundial, procura entender os movimentos locais da economia e os impactos nos preços dos resíduos. “Se o material está indo para o lixão, alguém lucra com isso. Por que não vai para reciclar? Gasta-se um valor enorme para proibir as pessoas de trabalharem de graça.”