Pesquisa

Estado de sobrevivência

Projeto investiga impactos da violência no cérebro do adolescente

POR ANA PAULA ACAUAN

Memória, atenção e emoção são três fatores fundamentais para aprender novos conhecimentos. Crianças com histórico de violência têm essas funções prejudicadas. A conclusão preliminar faz parte do Projeto Viva – Vida e Violência na Adolescência, conduzido pelo Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul (InsCer), com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). “Quando submetido a situações de estresse, o cérebro entra em constante estado de sobrevivência. Se o jovem está sentado na sala de aula preocupado com o que os pais ficam fazendo, se terá comida, se alguém vai pegá-lo, não sobra energia para aprender. Por outro lado, caso se desligue, pode deixar de perceber pistas importantes no ambiente”, explica o professor Augusto Buchweitz, coordenador do estudo.

Dos 70 alunos de escolas públicas investigados, mais de 90% relatam algum tipo de vitimização (presenciaram ou viveram acontecimentos como roubos, maus-tratos e/ou abuso sexual). Vinte deles vieram para outras etapas do estudo no InsCer. A meta é investigar 60 jovens de 10 a 12 anos.

Simulador de ressonância magnética do InsCer, o único da América do Sul, é usado com os jovens antes do exame real

FOTO: BRUNO TODESCHINI

A equipe seleciona adolescentes que atingem altos escores no Questionário de Vitimização Juvenil. Também participam aqueles que não sofreram violência, para comparação dos da- dos. Todos passam por testes de matemática, leitura, atenção e inteligência.

No Instituto do Cérebro, realizam exames de neuroimagem e ao mesmo tempo respondem a tarefas de atenção e memória. Antes de entrarem na ressonância magnética funcional, fazem um treino em um simulador, o único da América do Sul. Acostumam-se com o barulho e a sensação de ficar dentro do tubo. Depois do exame “de verdade”, há coleta de saliva e retirada de três centímetros de cabelo, para análise do cortisol (hormônio ligado ao estresse).

Durante a tarefa de atenção sustentada, quanto mais alto o índice de vitimização, foi mostrada menor atividade na área do cérebro chamada insula. Em situações de perigo, essa região integra informações sensoriais e ajuda a pessoa a tomar decisões. “Com a sobrecarga de estresse, o cérebro está se desligando”, constata Buchweitz.

O professor lembra que até os 21 anos o adolescente tem desenvolvido seu sistema límbico, responsável pelas emoções, mas um amadurecimento incompleto de algumas áreas do córtex frontal, ligado a planejamento e controle.

Quando se identifica situação de risco na família, há encaminhamentos conforme orienta o Estatuto da Criança e do Adolescente. As que apresentam sintomas de depressão ou sofrimento são acompanhadas pelo Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trauma e Estresse, do curso de Psicologia.

“É provável que os casos mais graves nem cheguem a nós porque precisamos da autorização dos pais. Mas algumas famílias buscam informação e ajuda”, relata o professor Rodrigo Grassi de Oliveira, um dos coordena- dores do estudo.

“Há urgência em agir nas vítimas de violência porque as consequências são difíceis de se reverter. Algumas crianças têm déficit cognitivo e não conseguem ler, aos dez anos.”
Augusto Buchweitz, coordenador do estudo

Porto Alegre no topo

A violência em Porto Alegre chamou a atenção do BID. A revista britânica The Economist revelou dados do Instituto Igarapé, em que a cidade consta como uma das 50 com maior número de homicídios do mundo em 2016: 40 ao ano para cada 100 mil habitantes. A pesquisa leva em conta municípios com mais de 250 mil moradores e exclui zonas de guerra.

Técnica líder da área de educação do banco, Aimee Verdisco, afirma que é preciso conhecer a realidade das crianças nesse contexto para que não se corra o risco de desperdiçar investimentos. “A violência é cada dia mais um problema. Para avaliar se a educação tem condições de responder a isso, precisamos de um entendimento profundo.”

Com prazo até abril de 2018 e liderança também de Alexandre Franco, o projeto-piloto poderá contribuir para intervenções educacionais e políticas públicas que visem à prevenção da violência. Ocorre ainda em Honduras, com a colaboração dos pesquisadores do Viva no Brasil. A ideia é alavancar um programa mais amplo em que a neurociências poderá basear novas iniciativas do BID.

Efeitos a longo prazo

A partir da coleta da saliva e do cabelo das crianças, os pesquisadores vão analisar se o eixo hipotálamo, hipófise e adrenal – que responde à demanda de medo ou estresse – poderia ter sido reprogramado pela violência, modificando a produção de cortisol e como as células responderiam a ele. Grassi explica que, quando há muito estresse, o corpo tenta se adaptar ao aumento excessivo desse hormônio, podendo provocar uma reorganização do DNA, particularmente nas regiões responsáveis por produzir o receptor de cortisol (glicorreceptor). “Com isso ocorreria um processo chamado de metilação, que teria o papel de silenciar o DNA.” A desregulação está associada a doenças como asma, artrite e obesidade e com um maior risco de psicopatologias.

Testes neuropsicológicos avaliam impacto da violência

FOTO: CAMILA CUNHA

Durante o exame, jovens respondem a tarefas de atenção e memória

Distorções de memórias

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Os jovens ouvem uma lista de palavras e tentam memorizá-las. Durante o exame, são exibidas em uma tela e eles devem dizer se lembram ou não. A hipótese é quem sofre mais trauma lembraria de palavras que nunca haviam sido apresentadas, em especial com conotação negativa.

Atenção sustentada

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Quando aparece uma bola, é preciso apertar com o dedo médio esquerdo e um x, com o indicador esquerdo. Na hora em que um retângulo azul é exibido, o adolescente deve acionar o indicador direito. Há a hipótese de que os expostos à violência teriam a capacidade de manter a atenção prejudicada.
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Insula (azul) é a área do cérebro desativada em vítimas de violência durante realização do teste.

Teoria da mente

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O jovem precisa definir o tipo de sentimento expresso no olhar de outras pessoas e se é homem ou mulher. Acredita-se que quem sofre violência durante o desenvolvimento teria maior dificuldade nesse aspecto.

Os pesquisadores do projeto

EM BUSCA DE PROBLEMAS REAIS

FOTO: CAMILA CUNHA

FOTO: CAMILA CUNHA

Augusto Buchweitz fazia o doutorado em Letras quando foi trabalhar com neuroimagem na Universidade Carnegie Mellon (EUA). Acabou se aperfeiçoando na pesquisa em neuroimagem e diversos aspectos da aprendizagem. Depois ficou na instituição por mais três anos para o estágio pós-doutoral. “O estudo teórico nunca me cativou; o que me atraiu para a neurociência foi a possibilidade de saciar a curiosidade sobre o que realmente acontece quando aprendemos e poder testar hipóteses guiadas por problemas da vida real”, destaca. Professor da Escola de Humanidades e dos cursos de pós-graduação em Letras e em Medicina desde 2012, é bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – nível 2.

ENGENHEIRO DO CÉREBRO

FOTO: BRUNO TODESCHINI

FOTO: BRUNO TODESCHINI

Engenheiro elétrico, na área de Telecomunicações, Alexandre Franco fez mestrado em Engenharia Elétrica na Universidade do Novo México (EUA) e trabalhou em um centro de pesquisa chamado The Mind Research Network. Durante o doutorado, aprendeu que neuroimagens podem ser utilizadas para estudar doenças neurológicas e neuropsicológicas. Atualmente colabora com diversos pesquisadores não engenheiros que desejam realizar projetos de pesquisa em neuroimagem.  Professor de pós-graduação em Engenharia Elétrica e Medicina na PUCRS desde 2011, é bolsista de produtividade 2 do CNPq.

“O QUE ME MOTIVA É FORMAR GENTE”

FOTO: BRUNO TODESCHINI

FOTO: BRUNO TODESCHINI

Rodrigo Grassi de Oliveira terminava a residência em Psiquiatria e começou a atender como terapeuta cognitivo-comportamental, quando se interessou em estudar estresse pós-traumático, campo que avançava com o 11 de setembro. “Com o   tempo, aumentei a dedicação à academia. O que me motiva é formar gente e investigar a consequência da violência.” Defendeu dissertação e tese em quatro anos e meio, fez doutorado-sanduíche na Universidade de Harvard, com Martin Teicher, o maior especialista em neurobiologia dos maus-tratos. Vencedor do Prêmio Capes de Tese 2008, foi convidado a ajudar a implementar a área de Cognição Humana no Programa de Pós-Graduação em Psicologia. É bolsista de produtividade 1D do CNPq.

DE CINEASTA A MÉDICA

FOTO: BRUNO TODESCHINI

FOTO: BRUNO TODESCHINI

Valentina Cará acordava às 3h para fazer vídeos de uma campanha política. Numa das madrugadas, enquanto filmava uma fila em frente a um posto, pensava que poderia ser a médica que faltava naquela comunidade. Graduada em Comunicação Social – Audiovisual, pela Unisinos, chegou a atuar em filmes e séries. Em 2010, ingressou na Medicina da PUCRS, onde recebeu o Prêmio Leonel Lerner de excelência acadêmica, passando três meses em Miami (EUA). Está no InsCer desde 2012. Conta com bolsa do BID para o mestrado em Medicina e Ciências da Saúde.