Escrita Criativa

Escrita Criativa

Produção experimental dos alunos do curso de Escrita Criativa da PUCRS selecionada pelo professor Bernardo Bueno.

O suco

ZACHARIAH HAGY/UNSPLASH

Acordei às 6h30. Estávamos eu e três amigos em
Coimbra, Portugal. Passara o dia anterior todo lembrando
do suco que tomara no café. Refrescante, diferente,
absurdamente saboroso. Pena ter tomado tão
pouco, mas é assim mesmo, quando se faz mochilão.

Daquela vez não seria assim. Acordei antes dos
meus amigos, com um único objetivo: tomar todo
aquele suco. O plano era ir até a cozinha como um
ninja, enquanto todos estivessem dormindo, e secar a
jarra até a última gota.

Escorreguei das cobertas como se fosse líquido e
caminhei com passos que nem bem tocavam o chão.
Girei a maçaneta e cruzei a grande porta como se fosse
ectoplasma. Fitei o corredor por alguns instantes:
não havia vivalma. Também, ninguém era louco de
acordar àquela hora com aquele frio. Só eu. Louco
pelo suco.

Observei a escada que teria que descer com olhos
de Exterminador. Estudei as dimensões dos degraus
e sua composição, a fim de pisar na superfície menos
ruidosa. Passei pela vazia recepção e pelo banheiro
deserto. Não precisei me esgueirar de lasers nem nada
mas, se tivesse, estaria preparado. Cheguei na cozinha.

Lá estava ele, dentro de uma jarra tampada, dividindo
seu espaço com uma rodela da fruta de onde
fora espremido, seja lá qual fosse (provavelmente
alguma prima da laranja. Uma prima rica. Tipo, muito
mais rica).

Caminhei em sua direção. Já estava em vantagem:
ninguém chegaria na cozinha a tempo de pegar a jarra
e me obrigar a dividir seu conteúdo. Enchi um copo
até a borda. Levei-o à boca. Os outros hóspedes (coitados)
não teriam o prazer de saborear aquele suco
novamente.

Tomei o primeiro gole.
Não era o mesmo suco.

Poema sem título

Hoje pisei em um fragmento esquecido
Que ardeu como fogo ao me encontrar
Pisei no caco enquanto arrastava o sofá

Me forcei a suprimir o grito que escapava
Invadida por uma consciência quase estrangeira de
Todos os silenciosos ruídos que rosnam em uma casa meio vazia

Sem pensar, meus olhos traiçoeiros buscaram
A parede manchada de vinho barato
E a lembrança da sua risada ecoou
Senti o roçar dos seus dedos nos meus

Mesmo na ausência da taça quebrada
O odor de álcool voltou a inundar a sala
Embriagando a resoluta confiança que eu finjo ter
Na mentira de que o meu mundo não mudou sem você

 

 

 

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Selene Sodré
3º semestre de Escrita Criativa
[email protected]

Definição

Sábia e tola.
Na entrega sou rasa.
Entre mantras e dores.
Minha alegria me cala.

Penso muito, sinto pouco.
Não manifesto amores.
Tenho em mim os aromas,
As lembranças, os sabores.

Fêmea ou casta,
Não defino atores.
Sei que existo, sou plena.
E o instante atordoa.

A mim bastam as palavras,
Me traduzem a alma,
Hipnotizam a mente.
E no fogo meu corpo.

Definições e estigmas,
Eu permito ao instante.
O que guardo em mim mesma,
São alguns dissabores.

Eleonora Coragem
2º semestre de Escrita Criativa
[email protected]

Sete anos de azar

Numa cidadezinha igual a outra qualquer,
todos acordavam cedo, iam para o trabalho,
voltavam para suas casas e assistiam
TV. Seguiam as suas vidas sem grandes
acontecimentos até que, certa manhã,
um fato um tanto curioso aconteceu:
todos espelhos, seus amados espelhos,
haviam se quebrado em mil pedaços.
— Deus do céu, quantos cacos no chão!
Menino, vai colocar um chinelo ou vai se
cortar!
Desolados, os moradores saíram do conforto
de seus lares e foram conversar com
seus vizinhos, que não viam há algum
tempo.
— Seus espelhos também?
— Quebradinhos, não sobrou um.
— Até os retrovisores…
— Minha mulher está histérica, morrendo
de medo.
— Não sabia que você tinha casado…
Poxa, faz tanto tempo assim?
— Sim… E o seu filho, quantos anos tem
agora?
— Sete.

.

— Nossa…
Especulações estranhas começaram a
surgir.
— Será que foram vândalos?
— Não, vândalos não… Isso tem cara de
que foi algo do céu.
— Não fale bobagem! Algo do céu…
— Tem explicação melhor?
Os vizinhos saíram então às ruas, olhando
pra cima.
— Será?
— Mas eu não estou assustado.
— Nem eu.
— Só estou curioso, na verdade.
A cidade acabou se adaptando e, em
mais uma manhã na cidade sem espelhos,
os maridos acordaram cedo e retomaram
suas atividades. Curiosamente,
a tal cidade hoje é considerada um dos
lugares mais românticos do mundo, justamente
devido à ausência dos espelhos.
Vez que outra ainda se ouve um marido
apaixonado dizendo:
— Danem-se os espelhos… me bastam os
reflexos nos teus olhos…

Nina Rosa Guimarães
4º semestre de Escrita Criativa
[email protected]

Produção experimental dos alunos do curso de Escrita Criativa da PUCRS selecionada pelo professor Bernardo Bueno.