Direito à verdade e à memória
Por Ana Paula AcauanAssassinado em 1975 por ser filiado ao Partido Comunista Brasileiro, aos 38 anos, o jornalista Vladimir Herzog virou um símbolo da violência estatal no tempo da ditadura civil-militar. Mais de quatro décadas se passaram, e o Judiciário não deu sequência às investigações, ao julgamento e à punição dos culpados. Em agosto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por esse caso e reconheceu que se trata de um crime contra a humanidade, cometido por agente estatal, num contexto de violações sistemáticas e, portanto, imprescritível.
Integrou a sentença uma peça jurídica feita pelo Grupo de Pesquisa Direito à Verdade e à Memória e Justiça de Transição, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS. Entre outros pontos, trata dos crimes da ditadura como de lesa-humanidade, do direito à verdade e dos retrocessos no processo de justiça de transição do Brasil. Foi seguido por outras quatro instituições, que atuaram como amicus curiae (expressão em latim que significa amigo da Corte).
A Corte Interamericana determinou que seja reiniciado o processo penal relativo aos eventos de 25 de outubro de 1975. “Aos familiares não estava sendo garantido pelo estado brasileiro um direito inscrito no Pacto de San José da Costa Rica, o acesso às garantias judiciais”, esclarece José Carlos Moreira da Silva Filho, professor da Escola de Direito e coordenador do grupo de pesquisa. O Brasil é signatário da Convenção Interamericana dos Direitos Humanos desde 1992. Seis anos depois se submeteu à jurisdição desse Tribunal. “O Brasil não foi condenado pela morte de Vladimir Herzog, pois na época não havia aderido à convenção, mas por omissão, pois não tem cumprido com seu dever de dar sequência ao devido processamento, investigações e responsabilização”, complementa.
Tão logo saiu a notícia de que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos levou o caso à Corte, Moreira, alunos e egressos da PUCRS começaram a se debruçar sobre o tema. Entre os membros da equipe esteve o advogado Ivonei Souza Trindade, formado na PUCRS em 2014. Quando estudante, liderou o Grupo de Estudos em Direito Internacional. Autor do livro Amicus Curiae na Corte Interamericana de Direitos Humanos: um guia prático, havia integrado a iniciativa sobre justiça de transição entre agosto de 2010 e junho de 2011. Trabalhou sobre a importância das normas da Organização das Nações Unidas no caso Herzog e a regra da proibição à tortura. Ao notar que alguns precisavam de ajuda para tratar de outros pontos, acionou a ex-colega na PUCRS Lídia Dreher, que passou a colaborar.
Além de Moreira, Trindade e Lídia, assinam o texto Camila Tamanquevis dos Santos, Caroline Ramos, Sofia Bordin Rolim, Andressa de Bittencourt Siqueira da Silva, Letícia Vieira Magalhães e Marília Benevenuto. O conteúdo será publicado em e-book pela Editora Tirant lo Blanch.
“Participar desse pedido de justiça é memorável para nós, cidadãos brasileiros, e especialmente para alguém que vivenciou na pele as atrocidades de um Estado de exceção que expulsa seus filhos do País para que tenham direito à vida e à liberdade.”
Marília Benevenuto, advogada e ex-exilada política
Entenda melhor
Amicus curiae é uma possibilidade de terceiros que tenham conhecimentos relevantes relacionados ao tema participarem de um processo.
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Repúdio à violação de liberdades
O Brasil tem mais de 70 mil processos de reparação pela via da anistia política. Uma série de desaparecimentos, torturas e mortes não foi esclarecida. Para o professor Moreira, a responsabilização por esses crimes é importante por simbolizar o repúdio à violação das liberdades e buscar construir uma cultura pública que condene esses atos. “Julgar os perpetradores vai até o tempo de vida dos suspeitos, buscar os desaparecidos vai até quando forem encontrados. Promover políticas de memória e reparação coletiva são pautas permanentes”, destaca o docente, ex-vice-presidente da Comissão de Anistia e seu conselheiro por quase dez anos.
O impacto na vida de milhares de famílias não pode ser mensurado. “Quando se instrumentaliza a instituição pública para violar direitos fundamentais, as consequências são sentidas por toda a sociedade.”
LEI DA ANISTIA
A Ordem dos Advogados do Brasil recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a inconstitucionalidade da interpretação de que os agentes públicos torturadores poderiam se beneficiar da Lei da Anistia, de 1979. “Infelizmente, em 2010, o Supremo reeditou o entendimento do tempo da ditadura”, aponta Moreira. Mas a decisão não é definitiva. Houve recurso para que o STF se manifeste sobre a compatibilidade da sua decisão com a da Corte Interamericana sobre a Guerrilha do Araguaia. Outra ação requer que não legitime a Lei da Anistia. Estão parados desde aquela época. Esse impasse não impediria que se decidisse seguindo a linha do Tribunal internacional. “Nos casos Rubens Paiva e Riocentro, os juízes de primeiro grau aceitaram as teses e deram início aos processos”, exemplifica o professor.
Batalha judicial |
Um dos resultados da decisão da Corte Interamericana foi a reabertura de investigações do caso Herzog por parte do Ministério Público Federal (MPF) de São Paulo. No dia de sua morte, em 25 de outubro de 1975, o II Comando do Exército afirmou que ele havia cometido suicídio. No mesmo ano, a Justiça Militar confirmou essa versão. O caso Herzog é um dos poucos que teve sentença favorável aos familiares e ao perseguido político durante a ditadura. A ação civil pedia que o Estado reconhecesse que foi assassinado no DOI-Codi (Centro de Operações de Defesa Interna), além de indenização. “A sentença do juiz Márcio de Moraes, em 1978, foi muito corajosa, dando ganho de causa para a família. Na época, o então Tribunal Federal de Recursos confirmou. Mas o Estado nunca cumpriu. Só em 2012, graças à Comissão Nacional da Verdade, um juiz determinou a mudança no atestado de óbito, retirando a referência ao suicídio e apontando a morte causada por lesões e maus-tratos sofridos em dependência do II Exército-SP”, informa Moreira. Em 1992, as autoridades iniciaram uma nova apuração, mas foi arquivada em aplicação da Lei de Anistia. Na mesma década, o jurista Hélio Bicudo tentou provocar o MP de São Paulo para apurar responsabilidades de Pedro Grancieri, conhecido como capitão Ramiro, de ter causado a morte de Herzog. Mas o Tribunal de Justiça concedeu habeas corpus. Em 2009, o jurista Fábio Konder Comparato voltou a incitar o MPF, mas o procurador mandou arquivar o pedido, alegando que o crime estava prescrito e se aplicava a Lei de Anistia. Só então o sistema interamericano foi provocado. |
Exilada na primeira infância
Filha de Alberto Benevenuto, médico do ex-presidente João Goulart, a advogada Marília colaborou com a peça jurídica especialmente na parte que aborda o Clínicas do Testemunho, do qual participou por ter sido exilada na primeira infância, entre 1964 e 1966. Considera fundamental esse projeto para “amenizar um trauma irreparável e inominável”. Ligado à Comissão de Anistia, oferecia atendimento terapêutico para vítimas de violência estatal.
Ainda antes de ir morar no Uruguai, a família vivia em casas diferentes e o pai foi para a Argentina a fim de escapar da prisão. “Eu era muito pequena. Sem nada entender, tive de abandonar, do dia para a noite, meu quarto de dormir, meu pátio, meus brinquedos, minha primeira casa, para nunca mais voltar. Num primeiro momento fui separada dos meus dois irmãos e dos meus pais. Depois nos unimos no Uruguai. Vivíamos com dificuldades básicas em uma casa cedida pelo Jango que abrigava vários brasileiros; não tínhamos privacidade nem brinquedos. Foi difícil sair e foi difícil voltar; depois vivemos uma espécie de exílio no nosso próprio País. Meu pai continuou a ser perseguido. Sofremos discriminação na escola em São Borja por sermos filhos de ‘pai preso’ e ‘comunista’, o que era pejorativo na época.”
Não bastasse esse trauma, Alberto Benevenuto perdeu o direito de exercer a profissão no Uruguai. Morreu em 1978, quando o carro em que dirigia se chocou com um ônibus, em Osório. A família nunca aceitou a versão oficial de acidente, pois, além de ter sofrido ameaças e emboscadas ao longo da vida, o pai seguia em baixa velocidade, em uma estrada sem curvas. O corpo sequer passou por necropsia nem o veículo foi periciado. Alegaram que “médico não faz necropsia em médico”. Marília ingressou com pedido de anistia no Ministério da Justiça, onde atua em processos desse tipo.