Escrita Criativa

Contos e poesias de alunos

Espaço experimental com produção dos estudantes

Cavalgadura

189EscritaCriativa(Foto1)O corpo inteiro do cavalo suspenso no tempo. O globo parando de girar nos segundos extensos do primeiro salto – dá pra sentir a terra, dá pra sentir o núcleo pulsando lento debaixo do chão. A dança começa no próximo obstáculo duplo. Há um ritmo, uma frequência de trotes no peito do homem que observa. O pelo do cavalo é negro. No pelo do cavalo a luz quente do sol de primavera se dissolve e faz brilhar seus olhos densos, concentrados. Duas pedras de obsidiana lapidadas habitam os lados de sua cabeça. No dorso do cavalo não há nada. No dorso do cavalo não mora ninguém que o maneje. O homem empurra os pés no chão, fecha os pulsos com firmeza e tenta resistir. O coração na garganta, dando nó, outra vez o coração na garganta. Há um muro. O percurso tem seiscentos metros de comprimento e pelo menos treze obstáculos. Há um muro bem no meio da pista e depois do muro tem um fosso de água. Não é muito alto, dá até para ver a cerca e as paralelas mais adiante, bem ali. O cavalo para. É só mais um salto, um salto bobo, acabou de fazer um quádruplo com perfeição, mas o cavalo para. O homem começa a suar, enxuga as mãos enrugadas e trêmulas no tecido da calça e faz mais força para não correr dali, implora com sua cabeça branca e teimosa que o cavalo continue a prova, mas o bicho nem se mexe. O cavalo encara o muro e, sem mais demora, o homem sente o cheiro camurçado do próprio corpo, o rabo batendo morno de um lado para o outro, escuta a torcida vibrando raivosa ao redor do circuito e tem a sensação de derrota já pesando nos cascos.

Maria Williane da Rocha Souto
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A beleza de um copo

189EscritaCriativa(Foto2)A beleza de um copo
está num copo contendo.
(Ser copo
é ser de um milhão a coisa mais importante
quando o copo é cheio.)
O corpo nasce sadio
mama, olha, descansa.
O corpo vive e basta.
Não cabe ao copo
ser porta-lápis
ter sobre si flores de plástico
e fotos publicitárias clamando
“É chique!”
A doença não pertence
ao corpo.
A doença não pertence ao corpo e
meu copo é cheio
nas mãos e nos lábios do
homem sedento.
Sou copo cheio
e as doenças que provoquei são mera poeira.
Lavada.

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Cândida Castro
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Coisas que são efêmeras

189EscritaCriativa(Foto3)O cheiro da madeira queimando. Um olhar desejado. O som de risadas espontâneas. O aconchego da cama durante a madrugada. O calor de um abraço. Preocupações descabidas. O cheiro refrescante da grama recém cortada. A sensação da bebida esquentando o corpo depois de um longo período no frio. O cheiro doce do perfume. O toque. O sentimento de pertencimento que somente a luz do sol proporciona. A expectativa de uma resposta. O calor de lágrimas indesejadas. Se encontrar em um verso de música.

 

 

 

 

 

 

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Ana Carolina Peres Bogo
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Happy hour

Recuei pro canto da sala. Eram três: um tipo velho, corcovado. Uma garota, trinta e poucos anos, um bisturi. Um outro mais baixinho, piparotes numa seringa. O velho, o da corcova, era o chefe da coisa. De imediato gostei daquilo. Bela corcova. Corcova de biblioteca.

― Vão no happy hour? ― perguntou o velho.
A garota disse que ia.
― Bisturi.
(Prendi a respiração.)
― E você?
― Claro ― respondeu o baixinho ― Afogar esse plantão no uísque.
O velho riu.
― Dezenove e trinta e cinco ― disse a garota.
Pigarros.
― Alguém reservou mesa?
Silêncio.
― Não vai dar ― disse o baixinho.
Calma, o velho acha que dá.
― Depois das dez? No Tavares? Você só pode tá de brincadeira.
― Ontem eu falei três vezes que tinha que reservar ― disse a garota.
O velho apressou:
― Tá bem feia a coisa.
― Quarenta e dois anos.
― Pois é. Desleixo.
O baixinho apontou no sovaco do velho:
― Acha mesmo que dá?
― Vai depender da pressão segurar.
― Não, no Tavares.
― Porra, já não sei.
(Se eu pudesse, pedia desculpas.)
― Hora ― pediu o velho.
― Dez pras nove ― disse a garota ― Não, oito, oito pras nove.
― A enfermaria vai?
Iam. Suores.
― Atenta a pressão ― disse o baixinho.
― Não vai dar.
― No Tavares?
― No Tavares, aqui, na puta que pariu dessa safena!
― Calma que eu vou intervir ― acudiu a garota.
― Telefonar lá agora?
― Não, aí!
― A pressão!
― Merda.
Notas curtas. ― Sutura!
Nota longa. ― Carga!
(Ricocheteei na parede.)
― Outra!
― Não vai dar, não vai dar.
― Varou, varou.
(…)
Viraram pro baixinho:
― Óbito, oito e cinquenta e sete.
O velho sorriu:
― Vai dar.

Bernardo Spindola Mendes
[email protected]

Produção experimental dos alunos do curso de Escrita Criativa da PUCRS selecionada pelo professor Bernardo Bueno.