Escrita Criativa

Contos de alunos

Produção experimental dos alunos do curso de Letras e de Escrita Criativa da PUCRS selecionada pelo professor Bernardo Bueno

Dilúvio em mim

Encontro-me diante de mim mesmo, refletido em um vidro fumê. Quando o táxi vermelho acelera, meu outro eu então se distancia, minha imagem é carregada para longe na janela traseira do carro.

Droga, se ao menos as solas não tivessem se derretido, se a química dos sapatos fosse mais resistente e eu pudesse desgrudá-los do chão.

O trânsito é inebriante. Um ônibus, dois carros, depois quatro, seis, dez, buzina, derrapa, alguém grita, acenam para que a lotação pare e eu, eu continuo grudado no chão, movendo meus olhos em um ritmo desenfreado.

Olho mais à frente. É como se enxergasse através de um código de barras em movimento. As barras maiores são caminhões, as menores, motos, e o outro lado da rua vai se formando aos poucos, um quebra-cabeças visual. Há ali um pequeno curso d’água, cercado por concreto e afogado em esgoto. Arroio Dilúvio, diz a placa.

Seu nome deve ter sido dado em outros tempos, quando a cidade toda bebia de sua água e sobrevivia de sua pesca. Um grande rio de enchentes sazonais, respeitado e observado com temor e expectativa. No entanto, em algum momento, o Dilúvio aquietou-se. Comportou-se demais, e assim foi subjugado.

Hoje o nome soa desconexo. Dilúvio: um raso fio de água correndo em meio à vida urbana, inofensivo e controlável. Parece que poderiam desligar sua vazão como se fecha uma torneira. Talvez pensem em pavimentá-lo assim que houver outro lugar para despejar o esgoto, inaugurando ali uma nova via para as lotações.

Esse rio morreu. Morreu quando decidiu escolher um curso previsível e habitual. Morreu pois, por mais forte que fosse, decidiu deixar-se levar em uma inércia de fluxo aquoso constante, abrindo mão de sua liberdade.

Desgrudo meus pés do chão. Arrebentaria os sapatos se fosse preciso, ficaria descalço. Não é necessário, o ato me parece simples agora. Dou as costas à avenida, ao Dilúvio, aos meus reflexos escuros que se distanciam em janelas, rasgando o ar em alta velocidade.

O rio sou eu.
Preciso transbordar.

Gabriel Borges
Escrita Criativa, 2º semestre
[email protected]


FOTO: AHMED ASHHADH/UNSPLASH

Mancha

Encarando-se na frente do espelho, ela não notou nenhuma diferença em seu corpo. Ele doía, mas não apresentava hematomas; doía, mas nada estava fraturado. Ele doía. Doía por dentro, por fora e talvez até mesmo por algum outro lado, mas se mostrava tão igual que por uns trinta ou quarenta segundos ela chegou a se perguntar se era verdade que havia de fato acontecido. O pensamento escapou rápido. Claro que era verdade. Tanto era verdade que lhe causou dor e lhe causou fadiga e, mais do que qualquer coisa, lhe causou derrota.

Olhava do seu mamilo esquerdo para seu furo na orelha direita; da marca de nascença no pescoço para a costela mais saltada do que as outras; do umbigo
para os novos fios de cabelo que, de tão curtos, não conseguia prendê-los. Cada vez mais se percebia como menos. Quem sabe apenas o ato de se perceber já era o suficiente. Embora ela nunca tenha sido do tipo que se contenta com o suficiente.

Mas por ora o suficiente lhe bastava. Se sentia pouco. Tão medíocre e monotonamente pouco que nem derrotada por inteiro conseguia se sentir. Afinal, para alguém que nunca transbordara, qualquer coisa pela metade servia de excesso. Pouco de tal modo que vai ver naquele instante toda a sua existência se limitasse a existir. Ao lado dele, pelo menos, era bem provável que sim.

Voltou para a cama. Virada para cima, se abraçou para ver se conseguia se aquecer sozinha. Olhou para o lado. Ele, sem nem mesmo estar acordado, conseguia; ela, não. Desistiu. Se enroscou ao redor do corpo dele sem se preocupar muito com a mancha de sangue no lençol.

Alice Elnecave Xavier
Escrita Criativa, 3º semestre
[email protected]


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