Escrita Criativa

Conto, miniconto e poema de alunos

Produção experimental dos alunos do curso de Letras e de Escrita Criativa da PUCRS selecionada pelo professor Bernardo Bueno

Ruína185EscritaCriativa(Foto1-3)

Dedicado aos órfãos das guerras na Síria e no Iraque

 Menino perdido
procura sua casa
em meio aos escombros
da aldeia sem cor.

Menino sedento
de olhos desertos
vagueia alheio
em pleno torpor.

Menino faminto,
sem eira nem beira,
cuspindo poeira,
sem pátio e sem flor.

Menino que é órfão,
sem colo e sem norte,
enfrenta a morte
sem pais nem calor.

Menino sangrado,
tão novo e cansado,
não sabe ainda
viver com rancor.

Gilson de Azevedo
Escrita Criativa, 2º semestre
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Sete segundos

O silêncio da biblioteca era sagrado e imutável. Quem ali estava não quebraria a regra ancestral.

Ele mantinha a rotina religiosamente: todos os dias, às 16h30min, pegava seu caderno e caneta, deixava sua mochila no armário nº 56 e então apertava o gasto botão do elevador para o 3º andar. Lá chegando, depois de analisar todo o ambiente, escolhia um lugar calmo e razoavelmente vazio para iniciar seus contos.

Num desses dias, uma tarde quente e ordinária, uma mulher sentou-se próxima, a algumas cadeiras de distância. Foram sete segundos até que ele olhasse para seus cabelos negros e curtos. Olhou de volta para o caderno. Sete segundos depois sentiu o olhar dela, que logo voltou ao computador. O som das teclas sendo pressionadas misturava-se ao da caneta escrevendo. Levou sete segundos até ele olhar novamente para ela: seu computador tinha adesivos verdes e em seu dedo havia um anel em forma de gato. Ele esperou. Contou. Ela olhou novamente, exatos sete segundos depois. Ele sorriu, quase eufórico, e contou até sete. Olhou, sorriu. Contou: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7. A mulher sorriu. 8, 9, 10. Então ela olhou para ele, que não sorriu, não se importou. Ela estranhou a repentina mudança. O clima ficou esquisito. Então, após sete segundos, ele pegou seu caderno e saiu de lá. Deixou o prédio. Olhou para trás durante sete segundos. Então se foi.

Não suportava mulheres desregradas.

Rennan Fattah
Escrita Criativa, 1º semestre
[email protected]

Beijo de outono

As folhas de outono, secas e quebradiças, caem no chão. Vão se acumulando devagar. Uma por uma.
— Eu te amo.
— Mentira.
O vento gelado leva as folhas embora. As carrega como bebês recém-nascidos e as deposita ora na grama, ora nos cabelos de alguém.
— Está com medo.
— Não estou.
— Está sim.
Suas mãos estão frias como o vento e secas como as folhas de outono.
— Admita que tem medo de me amar.
— Não posso amar alguém que mente.
Lábios rachados, palavras quentes, cabelo bagunçado, coração aberto.
— É sério.
— Como pode ter certeza?
— Não sei, eu só tenho.
— Não basta pra mim.
Mais um passo. O frio se transforma em calor e a palidez é coberta por manchas rosadas. Estou em chamas.
— Não precisa ter medo.
— Não tenho certeza.
— Talvez não precise.
— Não entendo.
— Talvez só precise se atirar.
— No precipício?
— Basicamente.
— Mas eu nem sei o que tem no final.
— Essa é a melhor parte: não saber.
— Estou com medo.
— Tenho medo também, mas estou tentando mesmo assim.
— Por quê?
— Porque tu vale a pena.
— E se a gente se machucar na queda?
— Ficarei feliz porque aconteceu.
Dois passos. Tão próximos, mas ainda tão distantes.
— Quero tentar.
— Fico feliz em ouvir isso.
— E agora?
A folha seca de outono caindo lentamente na grama úmida. Um choque de corpos, choque de almas.

Raquel Soares
Escrita Criativa, 2º semestre
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