Cérebro doente
POR ANA PAULA ACAUANPrimeira mulher a assumir a direção do Instituto Nacional de Abuso de Drogas dos EUA (NIDA, na sigla em inglês), em 2003, a neurocientista e psiquiatra Nora Volkow se notabilizou como pioneira também no uso da tomografia por emissão de pósitrons (PET) para investigação sobre o efeito das drogas, abrindo caminho para pôr fim à ideia de que a dependência é uma questão de comportamento, caráter ou autocontrole. “Infelizmente, muitos ainda acreditam que a adição resulta de uma falha moral que justifica criminalizar o indivíduo em vez de ajudá-lo com tratamento e recuperação”, afirmou à Revista PUCRS, por e-mail, completando: “A principal estratégia do NIDA para reduzir esse estigma é através de um melhor entendimento sobre como as drogas mudam o cérebro dos dependentes e pelo desenvolvimento de novas medicações”.
Nos últimos 30 anos, Nora Volkow publicou mais de 770 artigos revisados por pares especialistas, mais de 95 capítulos de publicações, editou quatro livros e coeditou uma enciclopédia sobre Neurociência. Recebeu o Prêmio Internacional de Ciência do Instituto Francês de Saúde e Pesquisa Médica, em 2009, e foi nomeada uma das “Top 100 Pessoas que moldam o nosso mundo” na revista Time, em 2007.
Nascida no México e naturalizada norte-americana, Nora Volkow é bisneta do revolucionário Leon Trotsky. No início de outubro, a convite do professor Rodrigo Grassi de Oliveira, da Escola de Medicina e do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul, ela fez uma videoconferência na PUCRS. No mesmo dia, mais de 20 especialistas brasileiros em estresse precoce e drogadição participaram de um simpósio na Instituição. Uma comitiva veio dos EUA como parte da cooperação entre a PUCRS e a Universidade do Texas para um estudo inédito sobre dependência à cocaína tipo crack, liderado por Grassi e pelas professoras Joy Schmitz e Consuelo Walss Bass e com recursos do Instituto Nacional de Saúde dos EUA (US$ 2,6 milhões). Além delas, estiveram na Universidade Nicholas Gilpin (Universidade de Louisiana) e Gabriel Fries (Universidade de Houston).
Em termos de saúde pública, como a senhora situa o abuso de drogas na atualidade nos EUA?
Nos Estados Unidos, a dependência é uma ameaça crônica à saúde pública. Embora os tipos de substâncias e a severidade do problema tenham mudado ao longo do tempo, os fatores determinantes, como questões socioeconômicas, doenças mentais, estresse crônico e disponibilidade de drogas, são os mesmos, ainda que a magnitude das consequências – custos econômicos e sociais exorbitantes, criminalidade, morbidade e mortalidade – seja determinada pelo número de pessoas que usam drogas e do quanto estas estão disponíveis. Frequentemente, o amplo acesso a potentes opioides e o crescimento da disponibilidade de metanfetaminas e cocaína estão nos levando aos mais altos níveis de mortalidade no país, em particular quando combinadas com outras drogas ou com álcool. A nicotina e o álcool, que são legais, continuam no topo da lista dos mais usados e levam ao maior ônus – 440 mil e 84 mil mortes anuais, respectivamente. A ilícita mais frequente é a maconha, cujo aumento do consumo é parte do resultado de sua legalização em muitos estados. Em geral, as drogas legais estão entre as primeiras usadas para fins recreativos.
É possível traçar um perfil do dependente (idade, classe social, escolaridade…)? Existe um tipo mais vulnerável?
A vulnerabilidade depende de múltiplos fatores, incluindo genética, idade, comorbidades e ambiente. Em geral, adolescentes e adultos jovens têm maior risco de adição, e os homens tendem a superar as mulheres no uso. Um suporte social frágil aumenta o risco, incluindo pobreza, baixo nível de escolaridade, instabilidade no emprego, fome e falta de conexões sociais importantes. Somam-se a isso doenças mentais, estresse e dor crônicos e questões psicológicas. É difícil definir um perfil.
Que impactos os exames de imagem trazem para a prevenção e tratamento do abuso de drogas?
O principal valor das ferramentas de imagem é para pesquisa. Em suas várias modalidades, esses exames nos permitem espiar dentro do cérebro de um ser humano vivo, de forma não invasiva, e caracterizar os múltiplos aspectos de sua estrutura – por exemplo, a saúde do tecido incluindo suas conexões –, química – os níveis dos receptores, enzimas, neurotransmissores – e funções – a comunicação entre as áreas do cérebro, em estados de saúde e doença. Geralmente, as ferramentas de imagem não são indicadas para prevenir ou tratar o abuso de drogas. Porém, são instrumentos poderosos que nos ajudam a entender déficits específicos e desregulações no cérebro de dependentes e a guiar novas abordagens terapêuticas. No futuro, os exames poderão nos trazer informações sobre o risco individual de adição e, portanto, ajudar-nos em intervenções preventivas para cada um.
Qual a posição do Nida sobre o uso de drogas legalizadas, como cigarro e álcool, com efeitos na saúde?
A legalidade de uma droga não é necessariamente baseada em evidências científicas, mas em fatores socioeconômicos. Esse status a leva a estar mais amplamente disponível e remove os impedimentos das pessoas de se envolverem em algo ilegal. Isso explica o motivo de drogas legais contabilizarem maior morbidade e mortalidade, pois um grande número de pessoas as usam com mais regularidade. No Nida, nossa prioridade tem sido desenvolver evidências de intervenções preventivas para proteger populações jovens contra a experimentação de drogas, incluindo álcool e tabaco. Isso porque os seus cérebros ainda estão em desenvolvimento, o que os fazem particularmente sensíveis aos efeitos negativos.
Quais suas orientações aos pais e professores para prevenir esse problema?
Sugiro três principais ações. Primeiro, os pais devem prover um ambiente de amor e cuidado que promova oportunidades para atividades, interações e estímulos e que motive as crianças e as permita crescerem e explorarem o mundo. Em segundo lugar, precisam estar alertas para mudanças de comportamento, incluindo apetite, higiene, sono e ações. Assim, estarão aptos a intervirem de forma precoce e apropriada. Somando-se a isso, os pais devem se esforçar para promover comportamentos saudáveis, como envolvimento em exercícios físicos diários, horas de sono regulares, alimentação saudável e manutenção do peso normal.
“Os pais devem prover um ambiente de amor e cuidado que promova oportunidades para atividades, interações e estímulos e que motive as crianças e as permita crescerem e explorarem o mundo.”
É talvez mais comum o uso indiscriminado de medicamentos controlados visando combater sintomas de depressão e ansiedade.
Todos os medicamentos psicoativos trazem não apenas benefícios, mas também efeitos adversos. Por isso é tão importante que sejam usados apenas em casos de diagnóstico rigoroso e sob supervisão e acompanhamento regular por um médico especializado.
Muitos estados dos EUA e países como Chile e Uruguai legalizaram a maconha. Qual sua opinião sobre a liberação como estratégia contra o tráfico?
O Nida é uma agência e não adota posições políticas. Porém, nós pesquisamos as consequências dessas decisões esperando que sirvam de alerta para legisladores sobre como minimizar o potencial negativo ao desenvolvimento cerebral.