Casa dos escritores
POR ANA PAULA ACAUANExpoentes da literatura brasileira contemporânea compartilham suas tardes com estudantes e professores, falando sobre dados biográficos nas obras, feminismo e questões de gênero, produções na periferia, erotismo e bairrismo, entre outros temas inquietantes. De pano de fundo, painéis com grandes nomes da cultura sulina: Caio F. Abreu, Cyro Martins, Patrícia Bins, Luiz Antonio de Assis Brasil, Lila Ripoll e Dyonélio Machado. E não menos visíveis no ambiente, manuscritos, datiloscritos e cartas dos 30 acervos de escritores e jornalistas que estão sob os cuidados da PUCRS. Esse é o Delfos – Espaço de Documentação e Memória Cultural, que, além de reunir relíquias, arquivos históricos e coleções, se transformou em um polo cultural.
Passaram pelo local, a partir de maio de 2014, 44 escritores. Nomes como Bernardo Carvalho, Martín Kohan, Sérgio Rodrigues, Ana Paula Maia, Marcelino Freire, Mario Bortolotto, Heloísa Buarque de Hollanda, Daniel Munduruku, Ricardo Aleixo, João Anzanello Carrascoza, Daniel Galera, Verônica Stigger, Vitor Ramil, a sul-africana Futhi Ntshingila, o argentino José María Brindisi, Carol Teixeira, Ricardo Lisias, Michel Laub, João Paulo Cuenca, Márcia Denser, Elvira Vigna, Antônio Xerxenesky, Michel Yakini e Angélica Freitas proporcionaram debates. As falas de alguns inclusive são usadas em teses e dissertações como material teórico. Pouco antes de morrer, o escritor João Gilberto Noll, vencedor de cinco prêmios Jabuti, esteve quatro vezes conversando com a comunidade universitária.
“Nenhum local em Porto Alegre recebeu tanta gente para falar de forma gratuita com o público. Esses autores se sentem valorizados, veem os acervos do Delfos e saem com a ideia de uma Universidade que respeita a escrita criativa como área de pesquisa”, destaca o coordenador executivo, Ricardo Barberena. Ele relata que alguns deles, fascinados pelo trabalho, perguntam como podem destinar seus materiais para estudo. Mais de mil pessoas participaram das atividades em 2016.
“Das palestras dos escritores ao cuidado com manuscritos, o Delfos representa um espaço de celebração e pesquisa do objeto literário.”
Ricardo Barberena, Coordenador executivo
UM ESPAÇO ABERTO
O Delfos é palco de reuniões, aulas, bancas, lançamentos de livros e eventos diversos. Não raro recebe a visita de estudantes interessados em conhecer a pesquisa na sua essência, o que envolve a preservação, para posterior verificação e análise, de documentos originais. Foi o caso de um grupo do Colégio Marista Champagnat que participou da Oficina Jovem Historiador Marista, com a professora Gislene Monticelli. Em uma atividade extraclasse, alunos do 9º ano do Ensino Fundamental e 3º do Ensino Médio ficaram empolgados. “Um deles me revelou que quer fazer História – e na PUCRS”, conta a professora do colégio Patrícia Moreira, diplomada pela PUCRS, que promove a iniciativa como parte do seu mestrado em Ensino de História, na UFRGS.
Sampaulo é o primeiro artista gráfico
Charges sobre política e futebol ou esses temas misturados, desenhos feitos na infância e uma autobiografia escrita em dezembro de 1986 são alguns dos materiais do artista gráfico Paulo Gomes de Sampaio, o SamPaulo, à disposição no Delfos para pesquisas. Trata-se do primeiro acervo desse tipo no espaço.
Os documentos e as fotos contam detalhes da sua trajetória. Mostram o aluno que se saía bem só na disciplina de Desenho e exaltam o adulto que fez do talento sua forma de vida. Ou o uruguaianense que participou da 1ª Convenção Internacional de Chargistas, em 1970, em Londres, representando a Companhia Jornalística Caldas Jr., e chegou a Cidadão Emérito de Porto Alegre.
SamPaulo guardava de tudo: de bilhetes a entrevistas que concedia. Colecionava traços de várias épocas. Depois da sua morte, as relíquias ficaram com a viúva, Eneida Sampaio. Quando ela se transferiu para Tramandaí, resolveu deixá-las com a sobrinha Maria Lucia, filha do também cartunista Sampaio.
Em 2012, Maria Lucia deu início a um blog sobre SamPaulo que soma quase 88 mil acessos. “Esse foi o grande estímulo para pensar na entrega do acervo para a PUCRS. Consideramos que essa seria a melhor forma de preservá-lo e, ao mesmo tempo, possibilitar sua consulta.” Com a ajuda financeira da irmã gêmea de SamPaulo, Theresa, foi contratada a arquivista Maria Osmari. Com a organização, havia as condições para procurar o Delfos.
Arquiteta aposentada e moradora de Florianópolis (SC), Maria Lucia pretende lançar um livro com os desenhos de Sampaio. Além das charges, pouco resta do pai, que não cultivava o hábito do irmão mais novo de conservar o próprio material.
Blog sobre SamPaulo: http://sampaulocartunista.blogspot.com.br/
Preciosidades |
|
RESUMINDO A TRAJETÓRIA
SamPaulo nasceu em Uruguaiana em 1931. Iniciou a carreira aos 24 anos, no jornal Clarim, do PTB, quando adotou o pseudônimo. O irmão assinava os trabalhos como Sampaio, e então ele uniu o “Sam” do sobrenome com o “Paulo” do nome. Trabalhou na Revista do Globo e nos jornais Diário de Notícias, Folha da Tarde, Correio do Povo, Folha da Manhã e Zero Hora. Morreu em 1999.
PEÇA DECISIVA NA ELEIÇÃO DE BRIZOLA
Uma charge de SamPaulo publicada no jornal Clarim ajudou Leonel Brizola a se eleger prefeito em 1955. Mostrava o presidente do Partido Social Democrático, Walter Peracchi Barcelos, apresentando Porto Alegre ao seu candidato, Euclides Triches, caxiense que se mudara havia poucos meses para a Capital.
“SÓ OS GRANDES TÊM PERMANÊNCIA”
Para o cartunista Edgar Vasques, SamPaulo consegue uma síntese entre forma e conteúdo. “Nada é supérfluo na sua charge”, destaca. Como os desenhos saem nos jornais, sua validade seria limitada a um período de tempo. Mas alguns traços de SamPaulo fazem sentido nos dias de hoje. “Só os grandes têm permanência”, analisa Vasques, que desenha desde menino e foi incentivado pelos irmãos Sampaio, amigos da família, a seguir no ramo.
SOFRENILDO
Personagem que marcou época na imprensa gaúcha, Sofrenildo surgiu por acaso. Era um sábado de manhã de janeiro de 1966 e o secretário de Redação do Diário de Notícias, Celito de Grandi, pediu a SamPaulo para preencher o espaço de uma reportagem que não tinha chegado. Os cartuns abaixo são a estreia do famoso personagem. A repercussão foi tão boa que Sofrenildo voltou no domingo seguinte e só na terceira edição recebeu nome.
Garimpando sobre Cyro Martins
Uma nova biografia de Cyro Martins está nascendo. O escritor e psicanalista que retratou o gaúcho a pé ganha um olhar mais amplo a partir das páginas preservadas no Delfos. A biblioteca pessoal, sua obra (revisada ao longo das edições), fotos, diplomas e originais de palestras guiam Fábio Varela na missão de desvendar o autor. Com a tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Letras, quer que Cyro Martins seja reconhecido além da trilogia Sem rumo, Porteira fechada e Estrada nova. “A crítica ficou muito em cima disso, pois, ao contrário dos regionalistas de então, ele mostrou as mazelas daquela população que estava sendo expulsa do campo. Mas não se aprofundaram no restante da sua ficção e ensaios.”
O doutorando orientado por Maria Eunice Moreira refaz no Delfos o percurso de leituras do escritor. Supõe que A Psicologia Profunda ou Psicanálise, de Julio Porto-Carrero, um dos pioneiros no Brasil, tenha sido a primeira tentativa de se aprofundar na área, em 1932. Obras completas, de Sigmund Freud, e revistas brasileiras e argentinas compõem sua biblioteca nesse campo. Sobre literatura, fica demonstrado seu gosto amplo.
Os quase 3 mil exemplares estão mantidos na disposição original. Cyro marcava poucos trechos a lápis ou caneta. Várias páginas são destacadas por um risco feito a unha. Folhas soltas com anotações também constam no miolo de algumas obras. Uma análise sobre Diadorim aparece anexada em Grande sertão: veredas, talvez escrita para embasar o ensaio psicanalítico que escreveria sobre o personagem.