Acesso à cidadania
Por Ana Paula AcauanSônia Xavier, 73 anos, nasceu na área onde hoje é o Quilombo Areal da Baronesa, no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre. A avó se refugiou no local, vinda de Encruzilhada do Sul. Cresceu vendo a mãe e as irmãs lavando roupa no Guaíba. Com o ferro em brasa, passavam e engomavam camisas para os clientes recém-chegados de navio. Era outro cenário, quando o leito do rio ia até perto de casa. “Mudou uma barbaridade! Sinto falta das árvores. A roupa quarava lá no fundão, onde havia as taquareiras”, conta. Sônia participa do carnaval desde sempre, de grupo de teatro e oficinas diversas. Transforma produtos recicláveis em bonecas de pano, colares, bolsas e até participou da Bienal do Mercosul expondo quadros. Não está familiarizada com o celular como os jovens de sua comunidade, mas gosta de ouvir a filha Fabiane lendo sobre a história de sua gente, datas importantes para o movimento negro e serviços disponíveis aos quilombolas.
Essas informações constam de um aplicativo que resulta de um projeto conjunto entre as Escolas de Humanidades e Politécnica. A ferramenta está em fase de testes por líderes dos grupos que são alvo da iniciativa. “É uma ideia legal, sugeri coisas para incluir. Trará muitos benefícios para a comunidade”, destaca Fabiane, secretária da Associação Comunitária Quilombo do Areal.
A pesquisa interdisciplinar identifica as demandas das mulheres quilombolas e o acesso às políticas públicas previstas no Programa Brasil Quilombola, implementado em 2004 pelo governo federal. Envolve alunos, professores e profissionais de Serviço Social, Engenharia de Computação e Sistemas de Informação. Conta com apoio do CNPq, da Fapergs e do edital Praias – Programa de Integração entre as Áreas da PUCRS. “É um projeto inovador e pioneiro no Estado. Com o aplicativo, queremos que as comunidades tenham maior controle e participação na busca por seus direitos de cidadania”, destaca a coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Violência, do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Patrícia Krieger Grossi, uma das responsáveis pelo estudo.
AMPLIAR O PROJETO
Na visão da professora Ana Paula Terra Bacelo, coordenadora do Bacharelado em Engenharia de Software, da Escola Politécnica, esse é um primeiro passo. “O aplicativo está mais informativo do que interativo. Gostaríamos que, por meio dele, as comunidades se conhecessem, se reconhecessem.” Uma das ideias é criar redes divididas por faixas etárias, possibilitando trocas de informações entre os quilombos.
Outra questão é que as áreas do interior do Estado em geral não têm conexão com a web e há poucos telecentros. “A ferramenta pode ser um argumento para gerar a demanda e requisitar internet via rádio”, aponta o aluno Thiago Gomes, do curso de Sistemas de Informação.
O aplicativo-piloto foi apresentado para o Grupo de Ações Afirmativas para Afrodescendentes e o Instituto de Assessoria a Comunidades Remanescentes de Quilombos, que apoiam a pesquisa. O grupo da PUCRS também fez parte do Encontro Estadual Quilombola, em setembro, e integrará a programação do Seminário dos Povos Pretos do Sul, em novembro, na Casa de Cultura Mario Quintana.
O que são quilombolas? |
Comunidades quilombolas são grupos com trajetória histórica própria cuja origem se refere a diferentes situações, a exemplo de doações de terras realizadas a partir da desagregação de monoculturas; compra de terras pelos próprios sujeitos, com o fim do sistema escravista; terras obtidas em troca da prestação de serviços; ou áreas ocupadas no processo de resistência ao sistema escravista. Até março de 2013, a Fundação Cultural Palmares certificou 2.040 comunidades quilombolas, presentes nas cinco regiões do País. FONTE: SECRETARIA NACIONAL DE POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL |
Seis gerações no Areal da Baronesa
A telefonista Fabiane Xavier mora numa parte da casa que pertencia à Baronesa do Gravataí, que doou a área para seus escravos. Sua família reside no local há seis gerações. Estudante de Serviço Social na Ulbra, está apaixonada pelo curso. “Concluí o ensino médio nos anos 1990, casei e tive filhos. Agora resolvi voltar porque a comunidade pode acessar políticas públicas e, se não existirem, é preciso ter alguém que as impulsione”, salienta.
O quilombo, localizado entre a Cidade Baixa e o Menino Deus, fica perto de escolas, creches e serviços de saúde. Com 87 famílias, tem cinco moradores cursando o ensino superior. “Depois de a gente entender nossa identidade e trabalhar a imagem negativa, passamos a ser respeitados no bairro”, constata Fabiane. Até o final do ano, esperam a titulação da área.
“Projeto ampliou minha visão”
Thiago Gomes estuda Sistemas de Informação e se interessou pelo projeto, pois a maioria dos trabalhos da sua área envolve a indústria. “É comovente. A última vez que a gente se reuniu com as comunidades, me cercaram e falaram: ‘Olha, é maravilhosa essa proposta, mas a gente precisa de tudo’. Como têm necessidades básicas, não vamos resolver com um aplicativo. Nosso desafio é fazer a interação. Tentamos entrar no cotidiano delas e pensar numa solução de impacto”, relata. Acredita que não adianta colocar todo o conteúdo e não entenderem como funciona nem usarem suas funcionalidades. Thiago quer continuar nessa linha. “Na minha profissão podemos fazer isso ou um caça-níquel, por exemplo. Ampliou bastante minha visão.”
Um morador de Fazenda Cachoeira, em Piratini, a 345 quilômetros de Porto Alegre, relatou o que mais sente falta.
– Precisamos de uma junta de bois pra arar a terra.
A assistente social Simone Oliveira, que faz estágio pós-doutoral na PUCRS e percorre quilombos pelo Estado, ouviu espantada a frase. “Eles se acostumaram a essa realidade por não terem oportunidade de aprender nada diferente”, interpreta. O mestrando em Serviço Social João Vítor Bitencourt conta que outra necessidade expressada pelos moradores foi dez metros de cerca para que as ovelhas fiquem juntas e não morram de frio.
Com sete famílias, quase todas sem alfabetização, Fazenda Cachoeira não tem água potável e fica a 30 quilômetros da cidade. Lá não se chega de carro. Dos 130 hectares iniciais, permaneceram com 20 e arrendam grande parte da terra. “Vendo de perto, a gente compreende por que eles acabam vendendo as áreas. Não é por falta de valorização do seu passado, mas por não conseguirem subsistência”, analisa Simone.
O local foi um dos 47 quilombos visitados no Estado pelo Grupo de Estudos e Pesquisa em Violência. No total, há 118 áreas reconhecidas no RS, das quais só quatro possuem titulação. O objetivo é mapear a realidade e provocar nas pessoas a consciência social em busca de seus direitos. O projeto começou em 2015. “Não temos informações no Rio Grande do Sul sobre os quilombolas. A partir de 2019, o IBGE vai incluí-los no levantamento da população brasileira”, destaca Patrícia Grossi.
Uma das conclusões preliminares da pesquisa é que 80% dos moradores têm ensino fundamental incompleto. Há um grande número de analfabetos. Em Rincão dos Martimianos, um dos quatro regularizados, em Restinga Seca, é o contrário: vários concluíram o ensino superior. Historiadores, sociólogos e enfermeiros fazem questão de atender as suas comunidades, ainda que atuem fora. Conseguiram um posto de saúde, com médico e agente, e participam dos conselhos de Saúde, Educação e do Idoso.
Mas essa não é a situação da maioria. Em geral, não há pavimentação nem transporte público. É um custo buscar assistência em saúde. “Em alguns territórios restam apenas cinco famílias. Sem infraestrutura, as outras os abandonaram. Daí os serviços não chegam porque alegam que é pouca gente para atender”, comenta Patrícia. Isso sem falar nas ameaças dos grileiros, que forjam documentos para se apossarem das áreas.
Os municípios recebem um aporte federal para repassarem a comunidades quilombolas reconhecidas. Em Canguçu, as assistentes sociais informaram sobre o recurso ao Conselho de Etnias, que então passou a cobrar da Secretaria da Saúde.
O estudo resultará em um livro, com a participação de líderes quilombolas, e uma cartilha. Em parceria com a Universidade de York, Canadá, contou com financiamento de um programa de internacionalização do país. A professora Simone Bohn, que coordena o Brazilian Studies Seminar, colabora com a análise dos dados.
“A gente não quer voltar pra casa”
Aluna de Serviço Social e bolsista de iniciação científica, Cássia Maia visitou a Comunidade de Palmas, em Bagé, e ficou impactada. “A gente não quer voltar pra casa. Coisas vão te alimentando. É muita luta e eles têm força de continuar.”
Quanto à parceria com a Politécnica, conta que no início eles tinham um papel operacional e o grupo do Serviço Social buscava os dados. “Fomos nos aproximando e aos poucos se efetivou o nosso desejo de que eles participassem mais junto às comunidades e a gente conhecesse a parte técnica.” A estudante destaca também o quanto se mobilizaram com o projeto. “Está sendo uma experiência bem rica que se reflete no produto final”, analisa.