A work in progress de 70 anos
LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL Coordenador-geral do Delfos – Espaço de Documentação e Memória Cultural
Fundar uma universidade é uma ousadia? Sempre é. Especialmente quando pensamos nas circunstâncias que levaram um punhado de intelectuais gaúchos e Irmãos Maristas, de traço e figura bastante formais, de óculos, terno e batina, a inovarem ao criar uma universidade católica em meio a um mundo de embates de frentes ideológicas que viriam a criar o ambiente propício à eclosão da Segunda Guerra. Esse início não foi uma experiência paroquial: o pensamento de inspiração aristotélico-tomista, fundado no ensino tradicional da Igreja, ressurgia de modo forte na intelligentsia europeia com os convertidos franceses. Essa eclosão se espalhou pelo mundo, e o surgimento da nossa universidade insere-se nesse novo campo de ideias. O pensamento dos instituidores era marcar sua posição católica e oferecer uma opção distinta ao ensino universitário laico que também se fundava no Rio Grande do Sul, com ele estabelecendo uma produtiva convivência.
A partir daí a Universidade Católica – depois Pontifícia – cresceu de maneira veloz, dentro do Colégio Marista Rosário e depois fora dele, recuperando o amplo terreno da chácara dos Irmãos Maristas adjacente ao colégio Champagnat. Hoje, quando vemos o prédio amarelo do colégio, com sua arquitetura conventual coroada por uma torre sineira, solitário em meio ao tempo e ao espaço, é que percebemos o enorme salto desde o arrojo inicial daqueles senhores. O contraste, que sublinha esse desenvolvimento é, também, a prova do quanto sucessivos reitorados souberam inventar sem perder a identidade.
Se os edifícios high-tech, autossustentáveis e respeitadores do ambiente acabaram por dominar a paisagem, sobra a delicadeza dos lugares de pausa, verdes no verão, dourados no outono, desnudos no inverno, mas onde na primavera, justo no período em que estamos, se aninham pássaros de uma fauna alada que poderia novamente inspirar Vivaldi – ou o bandoneon de Piazzola. E, curioso, são pássaros que, com os anos, acabam por assumir a cara da Universidade, não importando se são joões-de-barro, sabiás, bem-te-vis, pica-paus; já notaram como eles se parecem conosco? Não sei… uma cara de quem estuda e reflete – segundo a lenda acadêmica ainda a ser comprovada em alguma tese – e fazem silêncio durante as aulas.
“A PUCRS é uma cidade bem-aventurada, uma ilha de prazer estético, conhecimento e emoção, envolta por outra, que se expande de maneira descontrolada e assustadora”
Tudo isso nos conduz à ideia de um lugar em que nos sentimos bem e tudo se integra. A PUCRS é uma cidade bem-aventurada, uma ilha de prazer estético, conhecimento e emoção, envolta por outra, que se expande de maneira descontrolada e assustadora. Universidades, no mundo todo, procuram gerar espaços aprazíveis à sua volta, e a nossa, em particular, é particularmente empenhada nisso, e as recentes decisões quanto à cultura inserem-se nessa intenção. Não é o caso de pensar nas dezenas de acepções do vocábulo cultura, que isso não tem fim; mas, no nosso caso, ela significa a aliança necessária entre o que é o atual – e, por que não, o que é a moda – e o que é permanente no domínio das artes. Concertos de música pop, eletrônica, de Mozart ou Satie, exposições, peças teatrais, intervenções instantâneas a quebrarem a rotina, o fato é que começa a instalar-se na PUCRS certa naturalidade no desfrute dessas manifestações, as quais sempre provocaram inveja aos nossos estudantes em estágios em universidades estrangeiras.
Como cidade, ainda, foi possível acompanhar no decorrer dos anos – no meu caso, mais de quatro décadas – uma notável e bem-vinda mutação somática e linguística de sua população, que se tornou heterogênea e multifalante; recebemos alunos de todos os horizontes do mundo, que, de modo simpático, nos ensinam sotaques, filosofias e às vezes nos intrigam com seus hábitos gastronômicos e, em especial, nos mostram as virtudes da solidariedade. E nos perguntam muito, como, por exemplo, se o vento encanado é mesmo capaz de provocar pneumonia e morte certa em cinco dias, ou por que nos meses de janeiro ou fevereiro as pessoas ficam com uma cara de quem está à beira de derreter nas margens do Arroio Dilúvio.
Enfim, isto tudo é adorável – e, por isso, quem aqui está na PUCRS não quer sair dela. Mas para chegarmos a esse ponto, tivemos de atingir 70 anos de idade, e a tempo de agradecer àqueles senhores de gravata e colarinho eclesiástico que, talvez sem o saberem, ousavam pensar mais no futuro do que na própria época em que viviam.