EntrevistaFotos: Camila Cunha

“Esse lugar também é nosso”

Escritora Conceição Evaristo busca vaga na Academia Brasileira de Letras

Por Ana Paula Acauan

Aos 70 anos, a escritora Conceição Evaristo busca vaga na Academia Brasileira de Letras (ABL). Como uma entidade que resguarda a produção nacional e se supõe diversa, acredita que pode representar o seu grupo social, étnico e de gênero. “Esse lugar também é nosso.” Sua   candidatura recebe apoios em abaixo-assinado pela internet, ultrapassando 17 mil adesões. Visa à cadeira número 7, cujo patrono é o poeta Castro Alves, que atuou contra a escravidão. Ela substituiria o diretor de cinema Nelson Pereira dos Santos, morto em 21 de abril, e faria parte de um grupo seleto de representantes femininas, ao lado de Lygia Fagundes Telles e Rachel de Queiroz, entre poucas outras. A eleição ocorrerá em agosto.

Nascida em Belo Horizonte, Conceição Evaristo começou a escrever aos 44 anos, publicando na série Cadernos Negros, do grupo Quilombhoje. Com oito irmãos, trabalhou como empregada doméstica até concluir o curso normal. Foi para o Rio de Janeiro, onde passou em concurso público para o magistério. Conseguiu se formar em Letras, fazer mestrado e doutorado na área. Seu livro Ponciá Vicêncio foi traduzido para o inglês. Também publicou Olhos d’água, 3º lugar no Prêmio Jabuti, Becos da memória e Poemas da recordação e outros movimentos, entre outras obras.

Pouco tempo antes de submeter seu nome à ABL, Conceição esteve na PUCRS em programação promovida pelo Instituto de Cultura, ao lado da escritora Regina Dalcastagnè. Na oportunidade, falou sobre a representação da mulher negra na literatura brasileira e concedeu entrevista à Revista PUCRS.

 

A senhora cunhou a palavra escrevivência. Como fez a transição das histórias orais da infância para a escrita?

A transição se dá quase naturalmente, na mesma medida em que eu ouvia. A escuta me preparou para a sensibilidade com as palavras. Até hoje a própria sonoridade é capaz de me despertar para o texto. Num momento, conversando com a minha mãe, ela relembrava uma pessoa que existia na favela e contraiu uma doença pela própria pobreza e pelo fato de todo o mundo dormir junto. Dizia assim: “Vó Rita dormia embolada com ela”. Essa frase me pegou não pelo significado, mas pela sonoridade da voz da minha mãe. Tanto é que o romance Becos da memória começa com isso. Essa frase teve o poder de despertar a memória de alguns fatos que daí ficcionalizo, dou outra roupagem, e surge então o livro.

Como surgiu o termo escrevivência?

Vinha maturando ao longo do tempo. Em 1994, na minha dissertação de mestrado, fiz um jogo de palavras entre escrever, viver, escrever-se vendo e escrever vendo-se e aí surgiu a palavra escreviver. Mais tarde comecei a usar escrevivência. Em 2005, se não estou enganada, estive num seminário sobre mulher e literatura, no Rio de Janeiro, e houve uma mesa de escritoras bem diversa. Termino meu relato dizendo que nossa escrevivência não era para adormecer a casa-grande, e sim para acordá-la de sonos injustos. A partir do momento em que esse texto foi publicado nos anais do evento, foi ganhando mais leitores e interesse. O termo tem como imagem fundante as africanas e suas descendentes escravizadas dentro de casa. Uma das funções delas era contar histórias para adormecer os meninos da casa-grande. A palavra das mães pretas e bás era domesticada, na medida em que tinham que usá-la para acalentar essas crianças. Hoje a escrevivência das mulheres negras não precisa mais disso. Nossas histórias e escritas se dão com o objetivo contrário: incomodar e acordar os da casa-grande. Não estamos aqui para ninar mais ninguém nem apaziguar as consciências.

“A palavra das mães pretas e bás era domesticada, na medida em que tinham de usá-la para acalentar os meninos da casa-grande. […] Não estamos aqui para ninar mais ninguém nem apaziguar as consciências.”

Na PUCRS, a senhora falou sobre como a mulher negra foi representada na literatura e nas telenovelas. O que é preciso ser dito para que essa cultura ultrapasse estereótipos?

As culturas negras ou subalternizadas se valem por si. Aquela pergunta da (crítica indiana) Gayatri Spivak: “Pode o subalterno falar?”. Defende que a voz do subalterno é sempre atravessada por aqueles que detêm o poder, uma legitimidade política para representá-la. Quem está nesse papel é muitas vezes o intelectual. Quem detém o poder de fala para representar a si próprio e, cheio de boa vontade, quer falar pelo subalternizado. As culturas dominadas, como as africanas, que vêm para o Brasil, descobriram formas de se afirmarem diante das hegemônicas. Por pior que tenha sido o processo de escravidão, não há como não perceber as africanidades na cultura nacional. O que representa o País no exterior? Não é a valsa, não é a polca, é o samba, de origem africana. As matrizes estão bem fortes na nacionalidade brasileira. As culturas passam por processos de subjugação, mas estão sempre explodindo de uma forma ou de outra.

Hoje as pessoas produzem e podem publicar na internet. Ao mesmo tempo não ficam restritas a seus grupos?

Tenho dificuldade de lidar com o mundo virtual. Mal sou capaz de gerir meu e-mail. Esse processo de apresentação da minha candidatura na ABL começa dentro de uma coletividade, puxado pelas mulheres negras, mas extrapola. Quando você fala em internet, alguma coisa fica dentro de um nicho e, mesmo assim, pode entrar em outro terreno e ganhar novos adeptos.

Como pode definir o atual momento da cultura brasileira? O artista deve se manifestar politicamente?

Existe aquele que pensa na função social da arte. Em momento algum esqueço que estou lidando com a arte da palavra, mas isso não me impede que o meu texto se distancie, discorde de uma visão coletiva. O artista é livre. Pode querer falar só de si e isso ser representativo ou pode optar pela omissão e deixar de lado os problemas.

Por que desejou submeter seu nome à ABL, já que inicialmente titubeou?

Essa decisão foi tomada a partir do conclamado externamente. Perceber que existe um grupo de leitoras e leitores que me colocam nesse lugar foi muito revelador, inclusive da potência da minha literatura. Meu texto é capaz mesmo de convocar a coletividade, pensando nos afro-brasileiros, e em leitores que têm uma história diversa da minha. Homens, mulheres, negros, brancos. Não se trata de um texto apenas de uma mulher negra, mas de um grupo social, étnico e de gênero que ocuparia um lugar dentro de uma Academia que se supõe diversa, que representa uma literatura nacional. Esse lugar também é nosso.