Uma lei que mata de fome
Norma regulada pela Anvisa proíbe a doação de alimentos não comercializados. Enquanto isso, pessoas procuram comida em sacos de lixo
Sentado a alguns metros do supermercado Carrefour, em Porto Alegre, Alexandre Morais vê mais um dia chegar ao fim. Todas as noites, na Rua Albion, 402, espera o lixo ser colocado na porta. Ele é morador de rua há cinco anos e, como muitas famílias, aguarda o que é considerado lixo para se alimentar. À medida que o frio se aproxima, a preocupação de Alexandre aumenta. “No inverno é mais difícil, não tenho casacos e há menos comida. Às vezes deito com fome, não sobra nada para comer.”
A fome chama atenção para o que poderia ser a solução de algo que castiga tantas pessoas: o desperdício alimentar. Para sua dissertação de mestrado, a administradora de empresas Isadora Stangherlin realizou uma pesquisa entre consumidores da Capital em busca das razões de alimentos serem jogados fora ou sequer saírem das prateleiras do supermercado. Foram levados em conta aparência, data de validade e embalagem danificada. Ela percebeu que, quanto maior o conhecimento do consumidor sobre alimentos e risco alimentar, menor é o desperdício. E, quanto mais conscientes são as escolhas, menor a chance de colocar alimento no lixo.
O DESPERDÍCIO E A LEI
O desperdício acontece em três níveis. Entre os consumidores, pelo varejo (restaurantes e supermercados) e pelos produtores. Nos restaurantes, não é raro sobrar comida nos bufês. No entanto, são impedidos de doar o excedente. A lei que grande parte dos restaurantes teme é a RDC 216, regulamentada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
A data de vencimento estipulada para os alimentos preparados é de aproximadamente cinco dias. Mas, na maioria das vezes, é muito inferior ao verdadeiro prazo de vencimento para que não sejam mais considerados seguros. Nesses casos, a legislação determina que a comida deve ser descartada, sendo proibida a doação. O mesmo acontece na indústria, que, na tentativa de se precaver de possíveis contaminações, antecede os prazos de validade – levando toneladas de alimentos seguros às latas de lixo.
O clima de pânico que a segurança alimentar gerou, no entanto, não impede que pessoas como Alexandre recorram aos sacos de lixo para encontrar aquilo que não deveria estar ali. “Esta lei é muito ruim para nós. É muito alimento desperdiçado nos restaurantes. Quando não consigo dinheiro ou não nos dão um pouco de comida, procuro nas lixeiras”, conta o morador de rua.
MESA BRASIL
Alguns estabelecimentos procuram formas de doar o que não foi vendido sem infringir a lei. É o caso da padaria Compania – Tudo sobre Pão, parceira do programa Mesa Brasil. “É uma maneira de dar um destino para o que não tem mais valor para o cliente, mas que ainda pode ser consumido”, afirma o proprietário Diego Haupenthal.
O Mesa Brasil Sesc, rede nacional de banco de alimentos, é uma das principais iniciativas do País para combater a fome e o desperdício. Porém, também esbarra em questões legais. O coordenador da Ação Social do Sesc no Estado do Mesa Brasil, Alexandre Rodrigues, diz que a legislação é o principal motivo pelo qual não se pode doar alimentos com embalagens danificadas, por exemplo. Ainda assim, conta com o apoio de grandes empresas do ramo alimentício que doam parte de seus produtos para pessoas em situação de vulnerabilidade social e nutricional assistidas por entidades.
FORA DOS PADRÕES
O Mesa Brasil recebe excedentes de alimentos considerados fora dos padrões de comercialização para as empresas, mas que ainda podem ser consumidos. No entanto, refeições prontas, doces e pães com recheios cremosos e embalagens danificadas e com data de validade vencida não podem ser doados. Alguns movimentos, como o da rede mundial Slow Food, igualmente sinalizam quanto aos alimentos desperdiçados.
Caio Dorigon, um dos líderes, lembra que o Brasil desperdiça cerca de 41 mil toneladas de hortifrutigranjeiros por ano. O produtor não consegue vender para o varejo 30% do que produz por não estar adequado visualmente ao que o consumidor espera.
O projeto de lei Bom Samaritano, de 1998, propunha que pessoa ou empresa que doassem alimentos, industrializados ou não, preparados ou não, diretamente, ou por meio de entidades, associações ou fundações, sem fins lucrativos, fossem isentos de responsabilidade civil ou penal. Mesmo quando a doação seja resultante de dano ou morte ocasionados ao beneficiário pelo consumo do bem doado, desde que não se caracterize dolo ou negligência. O projeto está parado há 14 anos.