Evento gratuito promoveu bate-papos, oficinas e performances
O festival Primavera Literária Brasileira proporcionou três dias de debates, oficinas e performances. Realizado pela primeira vez no País, o evento recebeu, na tarde de segunda-feira (dia 22 de outubro), o escritor chileno Alejandro Zambra, que à noite participou do Fronteiras do Pensamento, e o escritor e cineasta marroquino Abdellah Taïa. A influência das questões históricas e culturais na literatura foi o ponto em comum entre os dois convidados.
Na conversa com o diretor do Instituto de Cultura, Ricardo Barberena, e o escritor Reginaldo Pujol Filho, Zambra comentou sobre a presença do período do governo do ditador Pinochet nos seus textos. Ao falar na infância, não consegue deixar de mencionar a ditadura. “Os adultos pareciam mal-humorados, sérios, silenciosos. Depois me dei conta de que havia medo.” Ao mesmo tempo, tentavam mostrar um Chile sem conflitos, em paz, através de notícias falsas. “Os mortos que não são de tua família te doem. Passa-se à experiência social e civil. Ser parte de um país se supõe estar em relação com essa dor coletiva.”
Pela primeira vez no Brasil e no Hemisfério Sul, Taïa começou sua fala dizendo ser quase um milagre ver seus livros produzidos e traduzidos. Conhecido por assumir publicamente sua homossexualidade, considerada um crime no seu país natal, o Marrocos, apontou que sua condição dá origem a vários conflitos e se propõe a reforçá-la em vez de escondê-la. O fato de morar na França, mais tolerante às diferenças, não o faz iludido perante à prometida liberdade, quase um slogan publicitário. A própria proibição à homossexualidade é uma herança do colonialismo, depois assumida pelos reinos marroquinos. “E hoje os países europeus apontam: ‘Veja, oprimem os homossexuais!’”, reforçou. Para ele, é preciso pensar sob o ângulo dos países periféricos.
À sua fala de desesperança, lembrou que às vezes as coisas acontecem. “A Primavera Árabe, de 2010, impôs algo novo. As pessoas acordaram.” Taïa reforçou que a homossexualidade é política. “Você está sozinho e o mundo contra você. Quem não quer mudar é porque pode perder o poder.”
Quando ingressou na universidade, em 1992, vagava pela capital Rabat sem condições nem de almoçar. Um dia entrou em um órgão de atendimento do governo e uma senhora analfabeta o pediu que escrevesse uma carta ao rei contando seus pesares desde o tempo do colonialismo. Naquele momento entendeu o que é se tornar voz de uma pessoa. Começou então a escrever cartas que resultaram em livros.
A conversa com Taïa teve como mediadores o professor e poeta Leonardo Tonus e a escritora Natalia Borges Polesso. Ao final, ele autografou o romance Ele que é digno de amar, lançado no Brasil pela editora Nós.
Entre performances e leituras, poetas brasileiros conversaram sobre seus livros, processos de criação e temas abordados nas suas obras durante a 1ª Jornada de Poesia Contemporânea, na sexta-feira (dia 19 de outubro). Em uma das mesas, dividiram o palco Tonus, Marco de Menezes e Ana Martins Marques, situando lugares, memórias e afetos em seus textos. Trataram da necessidade de escrever, da estranheza do ser poeta e da capacidade que a literatura tem de mostrar caminhos. Instigados pela mediadora, professora da Escola de Humanidades Moema Vilela Pereira, comentaram sobre a ideia de Paul Celan da poesia como regresso à casa. Depois de ler um trecho da sua experiência em Berlim, em que aborda os muros, os medos e os silêncios da humanidade, e com a vivência de 30 anos fora do Brasil, Tonus disse que várias línguas o atravessam e se sente também sem um lugar próprio. “A literatura não é espaço de conforto. Quero dizer algo e busquei uma forma que se aproximasse mais da poesia.”
Ana comentou que “escrever é como uma atividade doméstica”. Nos seus textos, cita objetos domésticos e espaços da casa, mas, ao mesmo tempo, esse espaço se abre. Começou a se expressar ainda criança e se sentia acolhida. Ao publicar livros, a casa está à mostra e provoca desconforto.
“O poeta é filho da criança”, complementou Marco. Da infância vem a inspiração. A composição das “coisas ordinárias do mundo” gera o escritor. “Quando leem o nosso texto ou nós mesmos lendo em voz alta há uma clivagem (fragmentação) que resulta em desamparo”, define o poeta.
Professor de Literatura, Tonus se sentiu “obrigado” a escrever ao ouvir o relato de uma escritora síria em Berlim. Estava fazendo uma pesquisa sobre refugiados quando ela repetiu uma ladainha por meia hora: “Da casa que deixei que já não existe já não me lembro. Da rua… Do filho… De uma coisa eu me lembro – dos gritos das mulheres que me ensurdecem até hoje”. De bicicleta chorando pelas ruas berlinenses, teve vontade de levar essa voz para a literatura. “O que vivi foi um tapa na cara e acho que o leitor deve acordar, ainda mais na situação que o Brasil e o mundo vivem hoje”, destacou Tonus.
Ana disse não gostar do discurso da literatura como redentora, mas “me ajudou a descobrir o que eu pensava e é um convite para ver em outras perspectivas”.
O estar em comum proporcionado pela sala de aula é um momento de respiro para Tonus. “Como professor alguém espera algo de mim”.
O evento também ofereceu oficinas distribuídas por três lugares de Porto Alegre: Multipalco do Theatro São Pedro, Aldeia e Fora da Asa.
A Primavera Literária Brasileira foi idealizada pelo professor de Literatura Brasileira da Sorbonne e poeta Leonardo Tonus e estreou em 2014. Desde então, o evento ocorre anualmente em Paris e já levou mais de cem escritoras e escritores, artistas plásticos, quadrinistas, dramaturgos e coreógrafos brasileiros para palestras, debates, saraus, leituras, oficinas e lançamentos de livros.
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