Universidade é espaço de produção e preservação da história do audiovisual nacional
Neste período de isolamento social, ir ao cinema é uma das atividades de lazer que mais está fazendo falta para os amantes da sétima arte. A sala escura e a tela em branco diante de poltronas ocupadas por indivíduos – que estarão diferentes quando subirem os créditos – já deixa saudades nos corações cinéfilos. Ao mesmo tempo, a televisão de casa se torna cada vez mais requisitada, proporcionando momentos de imersão em uma realidade diferente, em uma história nova ou no conforto de um clássico capaz de fazer esquecer, por 90 ou 120 minutos, as angústias da vida.
Não à toa, os cine drive-in ressurgiram com força neste mês. Além de arte que inspira e encanta espectadores, o cinema é um mercado importante, que emprega cerca de 300 mil profissionais e movimenta significativamente a economia no Brasil. “É uma atividade geradora de trabalho e renda, com produtos que não têm data de validade, comercializados via licenciamento a qualquer tempo”, diz o professor João Guilherme Barone, docente do curso de Produção Audiovisual da Escola de Comunicação, Artes e Design – Famecos da PUCRS.
Hoje, 19 de junho, é celebrado o Dia do Cinema Brasileiro. A data se refere ao ano de 1889, quando ítalo-brasileiros registraram as primeiras imagens em movimento no Brasil. E, desde então, o cinema nacional passou por diversas fases, acompanhando e se adaptando às mudanças de formato – das bitolas super–8 à digitalização – e da sociedade, enfrentando momentos críticos para a liberdade de expressão e passando e passando por períodos com políticas públicas mais estruturadas e favoráveis à área nas duas últimas décadas.
Assim, não é errado dizer que o cinema ajuda um pouco a contar a História. Para Barone, ele é um reflexo da sociedade:
“Acredito que a capacidade de representar a sua história, com maior ou menor quantidade de filmes ou ênfases em determinados períodos, é um indicativo da força da indústria audiovisual de um país”.
O professor acredita que, no Brasil, existe uma memória relativamente acessível através do cinema, embora ainda incompleta, se comparada com as cinematografias de países como França, Alemanha, Itália e Estados Unidos. “Algumas lacunas existem. Talvez nos faltem ainda mais filmes sobre a formação do Brasil, considerando os primeiros três séculos após o descobrimento. Nessa periodização, algumas questões estão ainda em pauta, como a situação dos povos indígenas, a escravidão, as consequências da exploração da natureza, as crises e conflitos do Império e da República etc.“.
Atualmente, as produções audiovisuais encontram no streaming novas possibilidades de circulação. Para Barone, esses serviços são decorrência dos avanços tecnológicos que começaram com a revolução digital, ainda em 1990. “Anteriormente, a circulação da obra cinematográfica estava restrita à sala de cinema, ao mercado de home video (com as locadoras) e à televisão (aberta ou por assinatura)”. Agora, com a liberdade de se assistir a um filme em casa, independentemente da programação de uma emissora de televisão ou da sala de cinema, o professor acredita que “há uma mudança radical no comportamento do público que vai ao cinema e que também gosta de consumir em casa”.
O cinema como espetáculo a ser desfrutado em uma sala específica para isso, segundo Barone, nunca poderá ser oferecido da mesma forma em um ambiente doméstico. “Ao mesmo tempo, há um dilema relativo ao tamanho do circuito exibidor mundial, que, com mais de 250 mil salas, ainda é insuficiente para poder lançar todos os filmes produzidos no momento certo e mantê-los em cartaz pelo tempo ideal para que todos possam assistir”, observa. No Brasil, por exemplo, os blockbusters internacionais chegam a ocupar 80% das 3.200 salas, fazendo com que filmes nacionais não encontrem lugar no circuito. “Estes poderão ser vistos no streaming, pouco tempo depois do lançamento nas salas e até quando não são lançados nos cinemas”, pontua.
O professor Carlos Gerbase aponta que, para as séries nacionais, o streaming é ainda mais interessante, uma vez que a remuneração de um produto único, como um longa-metragem, costuma ser pequena. “Ainda assim, esse mercado beneficia muitos produtos de qualidade que teriam dificuldade em encontrar seu espaço de divulgação em outros meios”, afirma.
O curso de Produção Audiovisual da PUCRS foi lançado em 2003. Antes disso, tanto Barone quanto Gerbase já lecionavam na Universidade, compartilhando com os estudantes o que há anos viviam na prática. “Minha relação com o cinema começou na infância, no Rio de Janeiro, assistindo a desenhos animados e filmes de aventura, mas também através da literatura”, lembra Barone. Carioca, conta que o pai escrevia roteiros e que visitou algumas produtoras com ele na época: “Na juventude, foi inevitável me tornar um cinéfilo apaixonado”.
O professor veio para Porto Alegre em 1977, em função de uma proposta de trabalho. “Aqui, fui acolhido pela Famecos, onde encontrei um ambiente muito estimulante em relação ao cinema”. Em 1985, em parceria com Enio Staub, colega jornalista, concluiu a produção de um documentário em 16 mm sobre a violência política no Cone Sul: “O filme recebeu o prêmio de Melhor Curta Gaúcho no 13º Festival de Gramado, além de outras premiações, e eu achei que era o momento de me dedicar profissionalmente a escrever e dirigir”.
A atuação na academia vem desde 1993, sendo que, cinco anos depois, assumiu a coordenação do curso de especialização em Produção Cinematográfica da Famecos – que foi o embrião para a criação do curso superior de tecnologia em Produção Audiovisual (Teccine). “O projeto do Teccine foi uma grande experiência de aprendizado, compartilhada com o Carlos Gerbase, e até hoje é uma referência em inovação no ensino de cinema”.
Gerbase começou a se interessar por cinema quando já cursava Jornalismo na Famecos, e essa relação também se deu através da literatura. “Eu já escrevia contos quando conheci o colega Nelson Nadotti, que fazia cinema em super-8. Achei que seria interessante se pudesse contar histórias dessa forma”. Os dois, junto com Hélio Alvarez, desenvolveram o filme Meu Primo, em 1979:
“Esse filme foi muito importante pra mim. Acabou sendo a porta de entrada pro mundo do cinema e eu não parei mais”.
Professor da Famecos desde 1981, acredita que a Universidade forma pessoas talentosas e que uma prova disso é a elevação da qualidade dos filmes produzidos no Estado. “O Rio Grande do Sul demorou um pouco a entrar no mercado da educação audiovisual, mas entrou muito bem e os resultados são evidentes”, aponta.
Segundo Barone, a Universidade tem e terá um papel cada vez mais importante no desenvolvimento da atividade audiovisual como um todo. “É preciso relembrar que o cinema nasce como produto da ciência e da tecnologia no final do século 19. Uma câmera fotográfica capaz de registrar o movimento levou ao surgimento de um novo espetáculo público, que se transformou em mídia social e com uma dimensão industrial planetária”, recorda.
O professor destaca o Centro Tecnológico Audiovisual do Rio Grande do Sul (Tecna), como um marco para a produção no Brasil: “É a única iniciativa de uma universidade brasileira para construir uma infraestrutura dedicada ao audiovisual, compartilhada com o mercado. O Tecna é um espaço de convergências e inovação, com ambientes tecnológicos de ponta que até bem pouco tempo eram inacessíveis à produção independente no Rio Grande do Sul e no Brasil”.
O centro, que teve sua estrutura completa inaugurada em novembro de 2019, tem capacidade para receber projetos de filmagens e oferecer todo o fluxo de pós-produção, incluindo mixagem em padrão THX para filmes, comerciais, musicais, séries, animação e games. Ao mesmo tempo, atende programas de formação regular ou de capacitação para os novos profissionais. “Certamente vai trazer muitos benefícios ao setor de produção nacional”, acredita Barone.
Além de ser um espaço de produção cinematográfica, a Universidade também é lugar de preservação da memória. Exemplo disso são arquivos mantidos pelo Delfos. Um dos registros encontrados no acervo diz respeito ao filme Inverno (1983), de Carlos Gerbase, com Giba Assis Brasil como assistente de direção e montador. Em um provável release, consta que o filme foi dublado e sonorizado nos estúdios da Famecos. “O som do filme é muito bom, comparado com o que fazíamos nos filmes anteriores, que era na base da fita cassete em estúdios caseiros. Ali já deu pra ver que era possível brincar um pouco mais com o som. Inverno foi uma escola para mim e as lembranças que eu tenho desse período são as melhores possíveis”, conta o professor, que vê a Famecos também como sua casa.
“Acho que a gente pode falar de pelo menos quatro gerações de cineastas que tiveram sua base na PUCRS. Em mais de 40 anos, muitos cineastas tiveram suas carreiras diretamente ligadas à Universidade”, aponta.
Um dos profissionais que Gerbase considera da “segunda geração” e que atua como professor na PUCRS há 14 anos é Gustavo Spolidoro. Seu primeiro filme, Velinhas (1998), é um curta metragem de 16mm, que ganhou os prêmios de Melhor Direção em Gramado e de Melhor Filme e Direção no Festival de Brasília. “Foi aí que começou minha carreira. Um tempo depois comecei a dar aula, fiz e sigo fazendo outros filmes”. Atualmente envolvido em três produções, Spolidoro diz que o mais lhe encanta em fazer cinema é o processo:
“Pensar num roteiro, numa equipe, nos festivais… é tudo muito interessante. A alegria de fazer cinema vem daí e das relações que a gente estabelece“.
Gerbase considera essa possibilidade do trabalho coletivo como algo muito forte do cinema. “Ele é feito coletivamente e também é assistido coletivamente, e pra mim isso foi muito importante, pois me colocou em contato com pessoas talentosas e interessantes. Além disso, eu acho muito bacana quando muitas pessoas estão concentradas em volta da mesma história. O ser humano é um animal social, então contar histórias socialmente é muito bom”. Talvez por isso as salas de cinema estejam fazendo tanta falta.