18/05/2021 - 12h18 - Por: Priscila Pasko, jornalista e escritora
Projeto Ialodê celebra história da música negra gaúcha
Artistas e produtores relatam suas motivações para a criação do show
Marietti Fialho, Glau Barros, Loma e Nina Fola / Foto: Josemar Afrovulto
São cerca de 20h30 do dia 23 de abril, uma sexta-feira. Na plateia do Salão de Atos Ir. Norberto Rauch, no Campus da Pucrs, com potencial para receber 1.630 pessoas, o público está ausente devido à pandemia. Mesmo assim, no palco, um show está prestes a começar. A iluminação, o cenário e uma banda composta por 17 músicos aguardam Loma, Marietti Fialho, Glau Barros e Nina Fola que ingressam em cena para apresentar o espetáculo Iadolê.
O termo, de origem iorubá, quer dizer “mãe da sociedade”. O dicionário iorubá-português, de José Beniste, define ìyálóde como “um título civil feminino de alto grau” usado em distritos municipais da cidade de Ègbá, na Nigéria. É a partir deste termo que o quarteto inaugura o projeto.
O espetáculo é uma celebração das carreiras artísticas das quatro cantoras e compositoras que revisitam os próprios repertórios, costurando, assim, uma narrativa da história da música negra do Rio Grande do Sul. O show foi captado integralmente em áudio e vídeo, mixado e masterizado, resultado que pode ser conferido pelo público no canal do YouTube da PUCRS.
Também será lançado pela internet um documentário média-metragem, no qual as cantoras compartilham as suas experiências de vida e carreira. Além disso, em breve, um disco deve ser lançado. A direção audiovisual é de Kaya Rodrigues e Gabriel Faccini. O projeto é viabilizado com recursos da Lei n°14.017/2020 – Aldir Blanc, contemplado pelo Edital Sedac n° 09/2020.
“O registro é extremamente importante, porque temos pouco material como esse, principalmente de artistas negros e, menos ainda, de mulheres negras na música”, comenta Glau Barros. Por isso, a sambista considera tão relevante o registro, que poderá servir de referência para as próximas gerações que se interessarem em saber quem foi Glau, Nina, Marietti e Loma.
O repertório foi selecionado pelas artistas e contam com diferentes gêneros: samba, maçambique, pontos, reggae, swing ou ainda música nativista. Cada uma levou ao palco quatro canções de maior significado para elas. Entre os compositores – gaúchos em sua maioria -, estão Loma, Nina Fola, Marietti Fialho, Giba Giba, Pâmela Amaro, Zilah Machado, Guaíra Soares, Gelson Oliveira, Pedro Cunha, Maumau de Castro, entre outros.
O diretor musical e de arranjos, Isaías Luz – que compartilha o posto com Thayan Martins e Rafa Rodrigues – conta que, a partir do repertório das artistas, referências foram estudadas, assim como os arranjos possíveis de se reproduzir ou alterar. “Tem música em que o fraseado original das melodias de introdução e de fim eram muito legais para mudar. Noutras, percebemos que precisava de outro brilho”, explica Isaías. A banda é composta por naipes de sopros, viola, cordas e muita percussão. O grupo reflete a preocupação da direção geral do projeto – coordenada por Glau, Loma, Marietti e Nina – de privilegiar a participação de musicistas mulheres e negras.
Show Ialodê / Foto: Josemar Afrovulto
Com 47 anos de carreira, a cantora e compositora Loma optou por buscar as suas raízes, que, há mais de 30 anos, estão fincadas no Litoral Norte do Estado. Traz com ela o maçambique, ritmo afro-gaúcho, resultado do sincretismo entre religiões de matriz africana e o catolicismo, manifestado pela música e dança. “Nós, negros, viemos pelo mar e temos muito a contar. Enxerguei uma grande oportunidade de mostrar ao público a minha vivência. E, além dela, o trabalho realizado no litoral, conferindo a ele uma visibilidade maior neste documentário”, diz Loma, figura conhecida e respeitada em festivais nativistas do Estado. Já realizou gravações com Elis Regina e Gilberto Gil. No ano de 2019, foi a artista homenageada no Prêmio Açorianos de Música pelo conjunto de sua extensa obra.
Glau Barros percebe que, levando em conta as singularidades de cada artista, as quatro têm muito em comum. “Não apenas musicalmente, mas de trajetória de vida mesmo. Foi a parte mais bacana, intercruzar essas histórias e observar que temos a música, a ancestralidade, a fé, tudo muito homogêneo entre nós”, observa a cantora e compositora, uma das principais referências do samba contemporâneo do Rio Grande do Sul. Glau também é atriz do primeiro grupo teatral formado exclusivamente por atores negros, o Caixa Preta. Seu primeiro disco solo, Brasil Quilombo, foi lançado em 2019.
Para Marietti Fialho, o projeto agregou muitos músicos, cada um vindo de uma vertente e, mesmo assim, foi possível fazer um trabalho maravilhoso, segundo a cantora. “Pessoas que conseguiram chegar a um denominador comum, que é mostrar toda a grandeza da mulher negra. Além disso, me deixou feliz de reencontrar pessoas depois de tanto tempo”. Quem frequentava a noite de Porto Alegre, conhece a cantora e compositora Marietti Fialho, que celebra 30 anos de carreira. Voz marcante do reggae gaúcho, integrou a Motivos Óbvios, uma das bandas pioneiras do gênero no Rio Grande do Sul, além, é claro, de fazer parte de outros projetos e parcerias. A voz da artista contempla outros estilos musicais, como o jazz, o soul e o samba. Atualmente, a cantora mantém o espaço cultural Gagabirô, na Zona Norte de Porto Alegre, que durante a pandemia, promove atividades virtuais.
Mulher de terreiro, cantora, compositora e percussionista, Nina Fola fala da troca de experiências que ocorreram nos encontros virtuais e durante os ensaios, no espaço Agulha. Conversas sobre relacionamentos, sobre os trabalhos em bandas compostas exclusivamente por homens, festivais ou ainda editais. “Acreditamos que a combinação foi plural. A ideia é de que o Ialodê não se encerre em si, pelo contrário, que seja possível a nós quatro dizermos o quanto existe de produção negra no Estado”, diz Nina, que é socióloga, doutoranda em Sociologia (UFRGS) e especialista em debates sobre racismo estrutural e religioso. Também é integrante do grupo AfroEntes e uma das idealizadoras do grupo de estudos Atinuké, coletivo que discute o pensamento de mulheres negras. Em 2019, Nina participou da residência do Projeto Concha e, desde então, vem se dedicando à carreira solo.
Nina fala a partir do terreiro, da escola de samba, lugares comumente estereotipados e colocados fora dos espaços de sabedoria e conhecimento. “Acredito que a comunidade gaúcha não conhece esta potência. Eu seria mais ousada: inclusive a comunidade negra sambista e batuqueira não percebe a sua cultura como uma arte possível de um palco como o da PUCRS”, ressalta. A cantora acredita que falta ao Brasil conhecimento da negritude gaúcha. “Espero que Exu, o senhor dos caminhos, e Ogum possam levar esse trabalho para muitas outras fronteiras, que projetem a cultura e as identidades e presenças negras no Rio Grande do Sul.
O Ialodê nasceu há cerca de dois anos, quando a produtora Alice Castiel, buscava um show para integrar o projeto que coordenava, o Concha. Isaías Luz, diretor musical e de arranjos do Ialodê, sugeriu os nomes das quatro cantoras, porém, por falta de recursos, não foi possível pôr em prática a sugestão. Apenas agora, após algum tempo de incubação, o Ialodê toma forma.
Nina comenta que as artistas manifestaram seus anseios e contrariedades a partir de experiências passadas. Almejavam uma proposta que não se limitasse à apropriação cultural, a uma relação de trabalho ou simplesmente de representatividade. Para Nina, é mais do que isso. “É trajetória, história, resistência. Esse projeto nos colocou neste lugar: de trabalhadoras, de produtoras de cultura, de pensadoras sobre a cultura de Porto Alegre, do quanto a gente trouxe das nossas referências, nomes importantes, tanto mais velhas do que nós, quanto mais novas.”
O diretor artístico do espetáculo, Thiago Pirajira, conta que a realização do trabalho exigiu desafios. Entre os principais, pensar a direção de um show em um contexto pandêmico e todas as limitações impostas pela conjuntura. Foi preciso rever estratégias de direção e fazer escolhas pontuais, propondo menos interações que pudessem promover algum tipo de risco entre as cantoras e a banda. Tais restrições, no entanto, não comprometeram o espetáculo que teve de convergir em um diálogo entre palco e câmera. “É um trabalho de imaginar e pensar em modos de como as pessoas vão assistir o show em suas casas e que consigam ter uma experiência sinestésica. Uma mínima sensação, alguma particularidade daquele momento”, comenta o diretor artístico.
Ele lembra que, durante as conversas na pré-produção, as artistas disseram que gostariam de ter o seu pensamento em cena: o legado histórico, cultural, ancestral e epistemológico. “São mulheres artistas que vêm ensinando e trazendo saberes para as artes de um modo geral, a partir de seus trabalhos”. Sendo assim, o desenho conceitual do Ialodê foi manifestar esses conhecimentos a partir da narrativa de como as músicas são cantadas, em sua maioria de autoria dessas cantoras. “Se a gente prestar atenção na letra das músicas”, observa o diretor, “elas contam as histórias de vida dessas mulheres.”
Quando escolheu para o seu repertório a música Abençoar, de Giba Giba, Marietti pensou justamente nisso: em coroar as suas vivências. Lembrou da época em que tinha cerca de 18 anos e assistia aos shows do Giba Giba no Parque Marinha do Brasil ou no Gasômetro. “Ele, no alto daquele palco parecia mais gigante do que os próprios gigantes. Então, Abençoar é abençoar o fato de eu ter conhecido este cara”, celebra Marietti.
Para Pirajira, o Ialodê, protagonizado por Loma, Marietti, Glau e Nina, propõe imaginar um olhar positivo para o futuro, pois, quando no palco, trazem com elas um “pluriverso”. Juntas, apresentam a continuidade dos saberes de mulheres negras, de mulheres negras artistas e da própria música produzida no sul. “Espero que a gente tenha alcançado este objetivo e que todo mundo goste, aprecie este trabalho incrível realizado e protagonizado por essas mulheres. Há uma equipe gigantesca que trabalhou junto para fazer com que este show, que é uma parte do projeto Ialodê, aconteça”, celebra o diretor.
A identidade visual do espetáculo é da artista visual Mitti Mendonça (Mão Negra), que trabalha com a técnica de resgate ancestral através do bordado em fotos. A realização do projeto é da Juba Cultural, com produção executiva de Alice Castiel e direção de produção de Sofia Lerrer.
Admiração e parceria confraternizadas
O show contou com participações especiais de músicos que fizeram parte da carreira de cada uma das integrantes do quarteto, como o percussionista Edu do Nascimento, que confraternizou entre as cantoras. Ele é filho de Giba Giba (1940-2014), um dos grandes nomes responsáveis por manter a tradição do tambor de Sopapo.
Edu do Nascimento e Nina Fola / Foto: Josemar Afrovulto
A cantora, compositora, atriz e sambista Pâmela Amaro era uma das musicistas da banda Ialodê e também estava entre os convidados especiais. Ao lado do quarteto, cantou o samba de partido alto de sua autoria, Veneno do café. No palco, Pâmela fez questão de registrar que as quatro cantoras são suas referências artísticas. “Elas terem afirmado que eu também sou uma ialodê mostra essa relação de fortalecimento, respeito e reconhecimento de que a mais nova reverencia a mais velha, e a mais velha a mais nova. Me senti muito honrada”.
A Tribo Maçambiqueira, grupo de Osório que promove o maçambique, também dividiu o palco com Loma, parceira dos músicos, entre eles, Paulinho Di Casa e Mário Duleodato. “É um grupo que eu acompanho, apresentamos shows juntos, participamos de festivais há muitos anos”, conta Loma. “Mantemos, inclusive, um grupo do litoral, no qual trocamos ideias, nos reunimos para realizar eventos, discutir os rumos da nossa cultura. É algo bem forte, mas o Rio Grande do Sul não conhece, que dirá o Brasil”, adverte a cantora, que enxerga no registro do Ialodê, uma chance de promover a cultura litorânea gaúcha.
A mostra é o resultado da pesquisa colaborativa dos estudantes das disciplinas Estágio em Fontes Escritas e Estágio em Fontes Visuais, do curso de História