Participantes do Laboratório de Fotografia e Memória apresentam trabalhos sensíveis de preservação e registro da memória da catástrofe
O Laboratório de Fotografia e Memória foi ministrado pelo professor da Escola de Artes, Design e Comunicação, Eduardo Seidl, iniciativa do projeto Ateliê PUCRS Cultura
Começando o mês de setembro, conhecido popularmente pelas chuvas de São Miguel, é inevitável lembrar dos últimos episódios climáticos que cobriram o estado. Setembro de 2023 não fugiu à regra, as chuvas foram fortes. O inusitado foi que, em novembro do mesmo ano, as chuvas se repetiram. Mas o impacto maior veio em maio de 2024.
A maior enchente da história do estado interferiu na vida da população gaúcha de forma imediata e ficará marcada na memória coletiva. Assim como os cotidianos, as atividades presenciais na Universidade e a programação do Instituto de Cultura da PUCRS para o mês de maio foram interrompidas. O Laboratório de Fotografia e Memória precisou esperar condições melhores para acontecer, e essas condições vieram só em junho. E a tragédia, ainda muito presente, predominou nas pesquisas propostas no laboratório.
Resgate histórico do mestrando em história Alex Latronico.
O Laboratório de Fotografia e Memória surgiu com a proposta de explorar as vocações documentais e de linguagem da imagem técnica para a reconstrução de narrativas visuais e para o fortalecimento de memórias. Como referência, explorou-se nomes como Susan Sontag, Pierre Nora, Janaina Schvambach e Rosângela Rennó.
Reconstrução, no sentido de entender a fotografia como um objeto capaz de estimular-nos a revisitar memórias, reviver experiências a partir do reencontro e reorganização das imagens como objetos de memória. Assim como defende Philip Dubois.
A primeira edição do Laboratório iniciou no dia 19 de junho e se estendeu por quatro semanas. Reuniu estudantes dos cursos de Comunicação e História que desenvolveram projetos fotográficos que abordam memórias pessoais, memórias da cidade e sobre as históricas enchentes na região. As seguir os projetos:
A Marca d’água | Bruno Battisti
A Marca d’Água é mais que uma mancha nas paredes; é uma lembrança persistente, uma cicatriz visível de um momento que mudou para sempre o centro de Porto Alegre. Voltar a esses lugares agora é como revisitar memórias transformadas. Nunca mais veremos esses espaços com os mesmos olhos.
Embora eu não seja natural do Rio Grande do Sul e minha vivência aqui ainda seja recente, o centro de Porto Alegre já tinha se tornado parte de mim. Caminhei por suas ruas, visitei museus, conversei com os vendedores locais, comprei nos mercados, joguei damas na praça. Tudo isso fazia parte das minhas primeiras impressões, as sensações únicas de ser um turista em uma cidade vibrante.
Mas, quando a água baixou, encontrei-me em meio a lembranças destroçadas. O que antes eram momentos de descoberta e alegria, agora estavam marcados por perdas e destruição. A enchente não só transformou o espaço físico, mas também minhas memórias e as de tantos outros que vivem ou visitam este lugar.
Ainda assim, a cidade é resiliente. O centro começa a renascer, as pessoas voltam a jogar damas na Praça da Alfândega, os vendedores retomam suas atividades no Mercado Público, e a vida continua. Mas, algo mudou. Em cada parede, seja ela branca, marrom, verde ou transparente, a marca d’água nos lembra do que aconteceu. Ela estará lá na memória das câmeras, dos aparelhos e, principalmente, de todos nós que testemunhamos e vivemos essa tragédia.
Meine Zeit | Pedro Stahnke
Trajetórias Fotográficas: fotografia e memória da enchente de 1965 na avenida Ernesto da Fontoura | Alex Latronico
A ideia deste projeto surgiu quando eu estava refletindo sobre o uso da fotografia como uma ferramenta de evocar memórias. Foi durante o percurso que fiz entre o Delfos, lugar onde pesquiso, e a oficina de Fotografia e Memória que surgiu a ideia de utilizar um conjunto de fotografias da enchente de 1965, adquiridas em um leilão em 2022, que mostrava a Avenida Ernesto da Fontoura entre as avenidas Missões e Riogrande, produzidas por uma empresa local.
Durante nossas conversas, resolvi voltar no mesmo lugar e recriar as mesmas fotografias com um olhar para as marcas deixadas pela enchente de maio de 2024, sobrepondo as fotografias antigas com os prédios e a rua. Meu objetivo com isso é mostrar ao expectador os impactos que as duas enchentes tiveram, como também as mudanças arquitetônicas ocorridas durante 59 anos nesta rua. Busquei também resolver uma inquietação minha que surgiu durante a pesquisa, saber o que aconteceu nesta enchente, e, para isso, consultei a revista do Globo de setembro de 1965. Constatei que aconteceram problemas muito parecidos com os de hoje, tais como falhas nas casas de bombas, lugares inapropriados para construção popular em Porto Alegre e no bairro Mathias Velho, em Canoas.
A grande contribuição deste projeto é fazer com que o expectador reflita sobre os impactos que duas enchentes deixaram em uma mesma avenida e como isso ficou gravado na memória. Também pensar os diferentes usos da fotografia e sua circularidade, valorizando as fotografias que foram produzidas por uma empresa, vendidas em um leilão e agora sendo objeto de memória em uma exposição.
Mercado pós-enchente | Eduardo Seidl
O Mercado Público de Porto Alegre é um lugar simbólico da cidade, ponto de encontro das culturas, das trocas, da diversidade e de religiosidade. Objeto de memória de boa parte da população.
Entre as principais imagens da enchente de 1941, o Mercado Público está lá, como a clássica imagem de Sioma Breitman, que ilustra a capa do livro reportagem de Rafael Guimarães.
Na enchente de maio de 2024, não foi diferente. O Mercado Público ficou submerso, ficou completamente inacessível, afetando tantas pessoas envolvidas pelo trabalho ou pelo comércio.
As fotografias mostram os primeiros dias após a baixa das águas no Mercado Público, as marcas e entulhos. Uma narrativa sobre a transição do silêncio empapado às primeiras movimentações e energia de retomada.
O leporello, como formato, proporciona formas variadas de visualização, possibilitando leituras livres. Um pequeno fotolivro que tenta representar a pluralidade e dinamismo que é o Mercado Público de Porto Alegre.