08/10/2024 - 11h55 - Por: Samantha Buglione, psicanalista e escritora

A peça “O que só sabemos juntos” é uma oração e uma prece

Mais que um espetáculo, é um convite a uma urgência: a da memória. Mas não qualquer uma, e sim a memória sonhada, imaginada, inventada e, sobretudo, compartilhada.

O que só sabemos juntos / foto: Giordano Toldo

A peça “O que só sabemos juntos” é uma oração e uma prece.

Mais que um espetáculo, é um convite a uma urgência: a da memória. Mas não qualquer uma, e sim a memória sonhada, imaginada, inventada e, sobretudo, compartilhada.

É preciso lembrar que escutar é deixar-se afetar e que para cada coisa que a gente diz e vê e lembra há um mundo que nos escapa e cala.

Nessa convocação à Mnemosyne, à memória — mãe das musas e irmã de Cronos, o tempo que nos devora (tão bem encarnado hoje nos boletos nossos de cada dia) —, os dois gigantes, Denise Fraga e Tony Ramos, chamam as pessoas pelo nome e são atores e plateia. E nessa chamada percebemos que estamos presentes para alguém.

Se o que vemos é fragmento, “O que só sabemos juntos” nos coloca diante da consciência que às vezes a melhor direção não está na vista de quem segura o leme do barco, mas do outro que divide a rota conosco.

“Solta a porra do leme”, grita Denise Fraga, numa das tantas belas falas do texto escrito por ela, Luiz Villaça e Vinicius Calderoni. Um texto que nos instiga a cultivar a dúvida. Não para nos perdermos, mas para nos acharmos na fresta da pergunta. Afinal, como tão bem dito pelos dois atores que dividem o palco pela primeira vez, a nossa biografia não é feita apenas do que fizemos, mas do que sonhamos.

Como, como não incluir na nossa história vivida todos os sonhos? Não merece o futuro imaginado ser parte da nossa memória? E tal qual as musas inspirar novos sonhos? Quão avassalador é esquecer o que sonhamos quando crianças. Ao fazermos isso não perdemos apenas o sonho, mas aquele que conseguia sonhar. Lembrar o sonho é fazer presente o sonhador.

Ouso dizer que não somos nossas memórias. Somos quando alguém nos pergunta sobre elas. Somos o gesto de fazê-las virar palavra. Essa palavra que reverbera num lugar chamado teatro, o lugar capaz de enganar Cronos.

Eu era uma das 1702 pessoas mais as cinco mulheres da banda da peça, mais Denise e mais Tony na noite de 3 de outubro no Salão de Atos de PUCRS em Porto Alegre. A noite em que Tony Ramos ganhou a honraria Mérito Cultural. Um prêmio que existe porque um professor o sonhou antes de fazê-lo e porque um reitor deixou existir, sonhou junto, portanto. A noite que mostra que uma universidade, no seu desejo de ser universal, precisa ser inspiradora e para isso não pode ignorar a alegria e esse lugar perigoso de mais de 4 mil anos que é o teatro.

Perigoso? Sim, perigoso. O teatro é perigoso porque ele resiste ao tempo e nos lembra que ainda há tempo quando largamos o leme de um roteiro nem sempre escrito por nós, ainda há tempo quando sonhamos, quando acreditamos, e quando perguntamos o nome de quem está ao nosso lado.

“O que só sabemos juntos” é uma oração sem ocultar o sujeito.

Texto escrito por Samantha Buglione, psicanalista e escritora.
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