08/09/2023 - 15h34

Um paradigma emergente de internacionalização do currículo

Por Betty Leask (La Trobe University)

Embora haja diferenças regionais e nacionais, seis características de um novo paradigma emergente de internacionalização do currículo podem ser identificadas na literatura e na prática.

  1. Currículo como sistema

Paradigma baseado na compreensão do “currículo” como sistema no qual muitos elementos trabalham juntos para restringir ou estender a aprendizagem dos alunos e, portanto, suas contribuições para suas comunidades locais e para o mundo. Mestenhauser (1998) identificou a importância de se afastar do “fragmentado, não integrado e fechado” (p.7). Sustentou que as abordagens de internacionalização do currículo fragmentadas pelo pensamento disciplinar, abordadas como um adendo, circunscritas em projetos e cursos individuais, restringem o potencial que a complexidade do currículo como sistema oferece.

Leask (2015) identifica três dimensões do sistema curricular: o formal, o informal e o oculto. O currículo formal é o conteúdo descrito na ementa e na programação ordenada e planejada de experiências e atividades dos alunos. O currículo informal refere-se à aprendizagem que acontece fora da sala de aula, incluindo serviços de apoio e atividades adicionais organizadas também por parceiros externos às universidades, em geral opcionais e não avaliadas – tutoria por pares, sessões de estudo assistidas por pares e festivais culturais, etc.

A terceira dimensão é o currículo oculto, pouco discutido e em geral invisível. Compreende várias mensagens não intencionais, implícitas e ocultas comunicadas tanto no currículo formal quanto no informal. Por exemplo, os livros didáticos selecionados enviam mensagem “oculta” sobre o conhecimento de quem conta e de quem não conta também. Mensagens do tipo são transmitidas também no currículo informal quando alunos internacionais são obrigados a concluir um treinamento em habilidades interculturais antes do início das aulas, mas os domésticos são dispensados. No caso vale perguntar: os alunos domésticos já possuem tais habilidades? Ou talvez não precisem delas porque cabe aos internacionais “se encaixarem”? Quais são as mensagens realmente pretendidas?

Os elementos formais, informais e ocultos do currículo são conectados e funcionam juntos como todo complexo. Resultados de aprendizagem pretendidos, conhecimento da disciplina, pedagogia, conteúdo e experiências dentro e fora da sala de aula e avaliação também são elementos do sistema que moldam a experiência vivida dos alunos, contribuindo ou não para uma aprendizagem internacional e intercultural durante a graduação.

 

2) Foco em resultados de aprendizagem para todos

Concentra-se nos resultados de aprendizagem necessários para viver e trabalhar em um mundo globalizado. O objetivo da internacionalização do currículo tem sido o de preparar os graduados para “o mundo altamente interdependente e multicultural em que vivem e (terão) que atuar no futuro” (Harari 1992, 53). O impacto da globalização nas comunidades locais significa que todos serão simultaneamente cidadãos e profissionais globais e locais.  Por muitos anos, no entanto, a internacionalização do currículo foi definida estritamente como programas de mobilidade, recrutamento de estudantes internacionais, ou inclusão de conteúdo internacional, e não como uma abordagem sistemática coordenada para o desenvolvimento de habilidades, conhecimentos e valores necessários a todos os cidadãos do Século XXI.

Em 2009, a Associação de Universidades e Faculdades do Canadá sugeriu que um currículo internacionalizado é “um meio para os alunos canadenses desenvolverem perspectivas e habilidades globais em casa” (AUCC 2009, p. 5). Leask e Carroll (2011) resumiram 10 anos de pesquisas internacionais mostrando que a presença de estudantes internacionais nas aulas e campi não resulta em aprendizagem intercultural sem planejamento cuidadoso e a intervenção dos professores e equipes de atendimento para apoiar o desenvolvimento de resultados de uma aprendizagem intercultural.

Hoje em dia, “a cidadania global tornou-se parte do discurso de internacionalização no ensino superior em todo o mundo”, (Deardorff & Jones 2012, p. 295) e a internacionalização do currículo está frequentemente ligada ao desenvolvimento dos alunos como cidadãos globais com compromisso de atuação ética e responsável socialmente em escala global, bem como na capacidade de trabalhar em equipes multiculturais/multinacionais (Lilley et al, 2014).

 

3) Um currículo descolonizado e cognitivamente justo

As discussões sobre descolonização do currículo e justiça cognitiva também são relevantes. Exigem a criação de espaços e recursos para repensar o currículo formal, informal e oculto, levando em consideração visões culturais alternativas do mundo e diversos sistemas de conhecimento, e como podem ser reconhecidos, examinados e valorizados. Um currículo descolonizado pode, por exemplo, examinar as maneiras pelas quais as abordagens dominantes da produção e distribuição do conhecimento estão quase inteiramente ligadas ao mercado e à economia; como isso reproduz e reforça a sociedade existente, perpetuando e exacerbando as desigualdades; e explorar abordagens alternativas e o que elas podem oferecer (Escrigas, Sanchez, Hall e Tandon 2014). Ambas se baseiam no entendimento de que o conhecimento é contextualmente situado, e não objetivo e culturalmente neutro (Leibowitz, 2017).

Na prática, os programas de estudo podem incluir espaço para que os alunos examinem criticamente os paradigmas de conhecimento dominantes, seus pontos fortes e fracos, em vez de basear-se em um conjunto estreito de visões de mundo, em grande parte resultantes da distribuição de poder.

Isso é importante porque em áreas como medicina, física, nutrição e geologia, por exemplo, o financiamento comercial de pesquisas em algumas áreas resultou em uma situação na qual a competição e o interesse econômico próprio substituem o bem comum. Além disso, o sigilo e o acesso restrito substituem o compartilhamento aberto de ideias e a exploração de todas as possibilidades oferecidas por novos conhecimentos.

As questões de justiça cognitiva foram identificadas em várias áreas disciplinares (ver, por exemplo, Breit, Obijiofor & Fitzgerald (2013) em relação ao currículo de jornalismo). É, portanto, uma dimensão importante ao repensar a internacionalização do currículo (ver Leask 2015, Capítulo 4, pp 42-52).

O currículo informal também pode ser descolonizado. O conhecimento indígena muitas vezes está ausente, faltando aos alunos e funcionários até mesmo uma compreensão básica de suas origens e potencial. As próprias disciplinas têm fortes culturas de conhecimento. Tradições e paradigmas do conhecimento locais são frequentemente considerados menos valiosos do que aqueles que vêm do Ocidente.

Criar uma cultura de campus que indique claramente o valor atribuído às diferentes formas de ver o mundo sinaliza não apenas que todos são bem-vindos no local, mas também que a experiência indígena e os paradigmas de conhecimento são valorizados. Como parte de uma estratégia para comunicar o valor atribuído ao conhecimento indígena local, a La Trobe University da Austrália exige que todos os alunos iniciantes concluam um breve módulo obrigatório a respeito de história, cultura e costumes indígenas australianos e dos fundamentos do conhecimento indígena. Wominjeka La Trobe é uma disciplina on-line obrigatória de curta duração que comunica o quanto a universidade valoriza o conhecimento indígena e desenvolve nos alunos uma capacidade mais ampla de graduação em alfabetização cultural. O módulo requer que os alunos se envolvam em uma reflexão crítica sobre os fundamentos culturais do conhecimento e suas próprias atitudes, valores e crenças (La Trobe University, s.d.).

Uma série de outras maneiras de usar a internacionalização do currículo como ponte para o avanço da justiça cognitiva são descritas em Breit et al. (2013); de Wit & Leask (2017); Green & Whitsed (2015) e Montgomery (2019).

 

4) Primeiro intercultural, depois internacional

A Interculturalização do currículo está ganhando maior destaque. Tradicionalmente, os elementos interculturais e internacionais sempre estiveram lado a lado, mas a orientação internacional dominava, na medida em que aparecia em primeiro lugar no discurso. No entanto, a interculturalidade está ganhando maior importância, em parte como resultado do foco na internacionalização do currículo em casa para todos (Jones, 2019).

Muitas definições diferentes de competência intercultural foram aplicadas na educação internacional. Todas incluem habilidades de conhecimento e atitudes como: “capacidade de comunicar-se de forma eficaz e adequada em situações interculturais com base nos próprios conhecimentos interculturais, habilidades e atitudes” (Deardorff 2006, p. 247) e conhecimento dos outros e de si mesmo e habilidades para interpretar, relacionar, descobrir, interagir e valorizar os valores, crenças e comportamentos dos outros (Byram 1997). Também há exemplos e modelos específicos para disciplinas, como o de Freeman et al. (2009), que desenvolveu uma taxonomia de competência intercultural destinada a ajudar os acadêmicos a mapear as oportunidades existentes, e criar e incorporar novas oportunidades em seus programas de estudos.

A competência intercultural é multifacetada e requer o desenvolvimento de habilidades, atitudes e conhecimentos complexos. No entanto, as discussões sobre pedagogias testadas no tema eram até recentemente limitadas. Isso ocorre em parte porque a aprendizagem intercultural foi por muito tempo erroneamente tomada como um resultado e benefício automático do contato intercultural no campus, nas aulas e no exterior.

A interculturalidade tem semelhanças e diferenças em relação à competência intercultural, referindo-se especificamente a interações de respeito mútuo e diálogo entre pessoas de diferentes culturas, que promovem a compreensão mútua, preservando a identidade cultural de cada indivíduo. É importante ressaltar que o conceito de interculturalidade não se refere apenas às relações que se desenvolvem entre indivíduos pertencentes a diferentes países ou regiões do mundo; também inclui indivíduos que fazem parte da mesma comunidade, mas que possuem características diferentes do ponto de vista étnico, social ou outro (Killick, 2017; Killick & Foster, 2021).

É, portanto, um conceito valioso para orientar a internacionalização do currículo em casa, para todos os alunos, pois a globalização resultou no aumento da diversidade nas comunidades locais e a massificação do ensino superior também trouxe aumento da diversidade sociocultural nas salas de aula.

 

5) Aprendizagem ativa e experiencial

A Aprendizagem ativa e experiencial é cada vez mais reconhecida como crucial em um currículo internacionalizado, em casa ou no exterior. As experiências de mobilidade proporcionam aos alunos encontros ativos com diversas pessoas e ideias. No entanto, eles raramente recebem auxílio para dar sentido a tais experiências e aprender com elas por meio de uma reflexão guiada que permita a incorporação desse aprendizado em seus programas de estudo de origem (Leask & Green, 2020).

Nas salas de aula em casa, as estratégias de aprendizagem ativa envolvem a elaboração de tarefas estruturadas e cronometradas pelos professores, nas quais se exija que os alunos respondam a uma ideia ou evento específico. Os alunos podem trabalhar em grupos ou sozinhos por um período bem curto para produzir um resultado tangível compartilhado com os demais. A aprendizagem experiencial inclui o trabalho dos alunos em iniciativas comunitárias, seja em casa ou no exterior, como parte do trabalho de classe A aprendizagem ativa pode ocorrer em sala de aula, on-line e no campus está no cerne de um currículo internacionalizado.

Combinações inovadoras de atividades presenciais e on-line com foco no desenvolvimento de todos os alunos, conhecimentos, habilidades e atitudes interculturais e internacionais (sua interculturalidade) assumiram uma importância muito maior durante a pandemia de Covid-19; porém, atividades como Intercâmbio Virtual e diversas formas de Aprendizagem On-line Colaborativa (Coil) vinham sendo cada vez mais aplicadas em universidades em diferentes partes do mundo mesmo antes de 2020 (Helm & Guth, 2022).  O uso inteligente de tecnologias novas e emergentes proporciona oportunidades de aprendizagem ativa, experimental e intercultural para todos os alunos em contextos locais.

 

6) Um processo contínuo baseado em propósito e dependente do contexto

A internacionalização do currículo é cada vez mais abordada como um processo planejado, propositado e contínuo de revisão e melhoria da qualidade com foco no desenvolvimento de resultados de aprendizagem internacional e intercultural para todos os alunos. Isso requer planejamento cuidadoso e revisão contínua do que os alunos estão aprendendo e em quem estão se transformando.

Tanto a internacionalização do ensino superior quanto a do currículo são processos dependentes do contexto. A ênfase em um país ou região pode incluir mobilidade, enquanto em outro, não. Marmolejo & Gacel-Ávila (2016) apontam para um foco persistente na mobilidade física de alunos e funcionários na América Latina que, apesar dos benefícios para os indivíduos, não têm contribuído para as transformações sistemáticas e melhorias de qualidade necessárias nos níveis setorial e institucional, e sugerem que isso precisa mudar.

As abordagens de IdC em qualquer contexto precisarão evoluir ao longo do tempo, incluindo um olhar disciplinar. Por exemplo, um currículo internacionalizado em enfermagem será bem diferente de um outro em engenharia, artes ou ciências.

No entanto, há uma diferença fundamental entre o Processo de IdC e abordagens tradicionais de revisão e reelaboração de currículo – a inclusão de um estágio de “Imaginar”, em que aqueles que elaboram o currículo formal (a equipe acadêmica) são convidados a explorar novas possibilidades e ideias – desafiando paradigmas dominantes e incluindo outras perspectivas nesta consideração.

Outro elemento-chave é trabalhar com os alunos como parceiros no processo. Isso significa “um processo através do qual todos os participantes têm a oportunidade de contribuir igualmente, embora não necessariamente da mesma forma, para a conceituação, tomada de decisão e prática de ensino, aprendizagem e avaliação” (Cook-Sather, Bovill & Felton 2014, 6-7).

A pesquisa de Green (2018) sobre o envolvimento dos alunos no processo de internacionalização constatou que usá-los como parceiros iguais, no lugar de informantes casuais, desafia as práticas institucionais naturalizadas de acesso e equidade, resultados e processo, poder e privilégio, criando assim novas possibilidades. Sua pesquisa sugere que tratar os alunos como parceiros pode ser uma ferramenta poderosa para criar uma forma mais inclusiva e igualitária de IdC.

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