08/09/2023 - 14h45

Novo paradigma de internacionalização do currículo

A evolução da internacionalização do currículo exige preparar todos os graduados para contribuírem ao mesmo tempo em sociedades locais e globais. Tal urgência trouxe desde 2015 uma mudança no foco da internacionalização do currículo.

A mudança proposta exige planejamento coordenado para alcançar metas específicas de melhoria da qualidade da educação e da pesquisa, envolvendo todos os alunos e funcionários, que gerem benefícios claros para além da comunidade acadêmica. Esse esforço é empreendido largamente por meio do currículo, peça chave na formação de pessoas e de valores centrais de disciplinas e profissões.

A Covid-19 veio enfatizar a complexidade da interconexão global, ao explicitar como políticas de governos nacionais e conglomerados regionais na produção e distribuição de vacinas, por exemplo, podem melhorar ou exacerbar desigualdades sociais e econômicas.  A pandemia tornou clara também a importância de uma mentalidade global, tanto da parte de indivíduos quanto de líderes, no entendimento das repercussões de suas ações em pessoas próximas e distantes, atuando em soluções globais de problemas por meio de pesquisa e ação conjuntas.

Embora haja diferentes nuances regionais e nacionais em abordagens e terminologias, é possível destacar seis características do novo paradigma de internacionalização do currículo, todas conectadas à evolução para a “Educação 4.0”. A seguir, um pouco mais sobre elas:

 

  • Currículo como sistema: baseia-se na compreensão de que o currículo opera como um sistema de elementos articulados que podem restringir ou ampliar a aprendizagem e sua contribuição à comunidade. Abordagens fragmentadas pelo pensamento disciplinar, circunscritas em projetos e cursos individuais, restringem o potencial oferecido por pensar o currículo como um sistema com três dimensões identificadas por Leask (2015): currículo formal, informal e oculto.

 O currículo formal é o conteúdo descrito na ementa e na programação ordenada e planejada de experiências e atividades de graduação. O currículo informal refere-se à aprendizagem fora da sala de aula em atividades organizadas não apenas pela universidade, mas por parceiros externos. Em geral são opcionais e não avaliadas  e apoiam a aprendizagem -programas de tutoria por pares, sessões de estudo assistidas por pares e festivais culturais, entre outros. O currículo oculto compreende mensagens não intencionais e implícitas comunicadas nos currículos formal e informal.

Por exemplo, livros didáticos selecionados enviam mensagem oculta sobre conhecimentos que contam e os que não contam. Também são transmitidas quando, por exemplo, os alunos internacionais são obrigados a treinamento em habilidades interculturais e os domésticos não. Levantando perguntas como: os alunos domésticos já possuem tais habilidades? Ou estão dispensados dela, sendo exigidas somente dos estudantes internacionais que precisam se encaixar? Tais mensagens precisam ser percebidas e analisadas criticamente, sendo mudadas de acordo com a intencionalidade buscada para o sistema curricular.

Elementos formais, informais e ocultos são conectados e interagem na formação. Resultados de aprendizagem pretendidos, conhecimento da disciplina, pedagogia, conteúdo e experiências dentro e fora da sala de aula e avaliação são todos elementos que moldam a aprendizagem internacional e intercultural. Quando os três elementos atuam articulados, por uma decisão intencional da instituição, criam um ambiente poderoso e dinâmico de formação para todos os estudantes.

 

  • Foco em resultados de aprendizagem para todos: Concentra-se em resultados de aprendizagem necessários a todos os futuros cidadãos e trabalhadores. Dez anos de pesquisas internacionais resumidas por  Leask e Carroll (2011) mostram que a mera presença de estudantes internacionais nas aulas e no campus não resulta em aprendizagem intercultural. Isso ocorre quando existe um planejamento cuidadoso e a intervenção de professores e equipes de atendimento para aprendizagem intercultural.

O foco nos resultados de aprendizagem e na preparação de todos os alunos, em lugar de atividades e contribuições que beneficiam uma minoria dos alunos, é parte importante do novo paradigma emergente de internacionalização do currículo.

 

  • Currículo descolonizado e cognitivamente justo: requer a criação de espaços e recursos de questionamento dos currículos formal, informal e oculto. Neles é preciso considerar visões culturais alternativas do mundo e diversos sistemas de conhecimento, e como podem ser reconhecidos, examinados e valorizados. Um currículo descolonizado pode, por exemplo, analisar as maneiras pelas quais abordagens dominantes da produção e distribuição do conhecimento estão ligadas ao mercado e à economia, e como contribuem para reproduzir e manter a sociedade existente, perpetuando e exacerbando desigualdades. Oferecendo inclusive modos alternativos para a construção de um mundo diferente.

Os dois princípios baseiam-se no entendimento de que o conhecimento é contextualmente situado, ao invés de objetivo e culturalmente neutro. Na prática, programas de estudo podem incluir espaço para que os alunos examinem criticamente os paradigmas de conhecimento dominantes, seus pontos fortes e fracos, sem se basearem em um conjunto estreito de visões de mundo.

O currículo informal também pode ser descolonizado com a inclusão de saberes em geral ausentes como é o caso dos indígenas e dos negros, entre outros. As próprias disciplinas têm fortes culturas de conhecimento. Tradições e paradigmas do conhecimento locais são frequentemente considerados menos valiosos, tanto no currículo formal quanto no informal.  Criar uma cultura de campus que indique o valor atribuído às diferentes formas de ver o mundo sinaliza que todos são bem-vindos e agregam saberes relevantes.

 

  • Primeiro intercultural, depois internacional: elementos interculturais e internacionais do currículo sempre estiveram lado a lado. Mas até recentemente a orientação internacional era a dominante. No entanto, essa ênfase está mudando, e a interculturalidade ganhou mais importância, em parte como resultado do maior foco na internacionalização do currículo em casa para todos os alunos.

A competência intercultural é claramente multifacetada e requer o desenvolvimento de habilidades, atitudes e conhecimentos complexos. No entanto, as discussões sobre pedagogias para a formação de competências interculturais eram limitadas até pouco tempo. Em parte porque a aprendizagem intercultural foi tomada erroneamente como resultado automático do contato entre diferentes no campus, nas aulas e no exterior.

É importante ressaltar que o conceito de interculturalidade não se refere apenas às relações que se desenvolvem entre indivíduos pertencentes a diferentes países ou regiões. Abrange pessoas da mesma comunidade, com diferentes bagagens étnicas, sociais e identitárias, entre outros. O aumento da diversidade nas comunidades locais e a massificação do ensino superior trouxe mais diversidade sociocultural à sala de aula.

Trazer a interculturalização para o primeiro plano tem vários efeitos. Amplia o escopo dos conceitos teóricos e ideias que influenciam o desenho de curso e a pedagogia. Em segundo lugar, quando torna-se uma estratégia institucional, faz do envolvimento com a diversidade em sala de aula e nas comunidades, algo tão importante quanto contatos internacionais.

 

  • Aprendizagem ativa e experiencial: Experiências de mobilidade proporcionam aos alunos encontros ativos com pessoas e ideias. No entanto, raramente os estudantes recebem apoio para dar sentido a tais experiências e aprender por meio delas a partir de uma reflexão guiada, que incorpore tal aprendizado em seu programa de estudo de origem. Nas salas de aula em casa, as estratégias de aprendizagem ativa envolvem a elaboração de tarefas estruturadas e cronometradas pelos professores, nas quais se exija que os alunos respondam de alguma forma a uma ideia ou evento específico.

Os alunos podem trabalhar em grupos ou sozinhos, por período curto para produzir um resultado tangível, compartilhado com os demais. A aprendizagem experiencial inclui o trabalho dos alunos em iniciativas comunitárias, seja em casa ou no exterior. A aprendizagem ativa pode ocorrer em sala de aula, on-line e no campus e está no centro do currículo internacionalizado. Embora a imersão em estudos no exterior tenha sido vista como prática ideal durante muito tempo, tal visão está cada vez mais em cheque. Combinações inovadoras de atividades presenciais e on-line com foco no desenvolvimento de todos os alunos, conhecimentos, habilidades e atitudes interculturais e internacionais (sua interculturalidade) também assumiram uma importância maior durante a pandemia.

 

  • Processo contínuo com propósito e baseado em contexto: A internacionalização do currículo requer planejamento cuidadoso e revisão permanente do que os alunos estão aprendendo e como estão se transformando como resultado desse processo. Tanto a internacionalização do ensino superior quanto a do currículo são processos dependentes do contexto. A ênfase em um país ou região pode incluir mobilidade, enquanto em outro, não. Marmolejo & Gacel-Ávila (2016) apontam para um foco persistente na mobilidade física de alunos e funcionários na América Latina que, apesar dos benefícios para os indivíduos, não têm contribuído para transformações sistemáticas e melhorias de qualidade nos níveis setorial e institucional.

Em outros locais, o foco tem estado na empregabilidade e na preparação de graduados para o mercado de trabalho, como é o caso do Reino Unido e da Austrália. O contexto inclui também a dimensão disciplinar, institucional, nacional, regional e global e como interagem entre si.

Outro elemento-chave é trabalhar com os alunos como parceiros no processo de internacionalização do currículo. Significa trazer estudantes para participarem e contribuírem na conceituação, tomada de decisão, práticas de ensino, aprendizagem e avaliação. A pesquisa de Green (2018) sobre o tema, no entanto, constatou que usar os alunos como parceiros desafia práticas institucionais naturalizadas. O trabalho sugere que fazer dos alunos parceiros é uma maneira poderosa de criar formas mais inclusivas e igualitárias de internacionalização do currículo em casa.

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