08/09/2023 - 15h01

Internacionalização e Qualidade

Professora Luciane Stallivieri / Foto: Arquivo pessoal

A professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luciane Stallivieri, está mergulhada nos debates sobre internacionalização do Ensino Superior no Brasil e na América Latina. Pesquisadora do Instituto de Estudos e Pesquisas em Administração Universitária (Inpeau) da UFSC realiza diversos estudos e trabalhos de diagnóstico e formação para universidades em busca de aumentar a qualidade da Educação por meio da internacionalização. Na entrevista, concedida por meio remoto à Newsletter, ela explora as conexões entre qualidade, avaliação e internacionalização no sul global. A seguir, trechos da conversa:

Por que é tão difícil definir qualidade no ensino superior e quais as consequências disso para os modelos de avaliação?

 Luciane Stallivieri: Primeiro porque qualidade é um conceito subjetivo e dinâmico, e depende da percepção e das expectativas de quem avalia. Dentro de uma instituição de ensino superior, por exemplo, a leitura dos estudantes é diferente daquela dos dirigentes, dos docentes e dos empregadores. Mas existem pilares fundamentais que ajudam a estabelecer critérios claros para avaliação, segundo a literatura internacional.

O primeiro é que a qualidade tem que ser proposital e estar em conformidade com a visão e os propósitos estabelecidos. Segundo, deve alcançar uma distinção ou excelência excepcional e entregar um valor passível de ser medido por indicadores e por mecanismos de monitoramento. Terceiro, deve ser transformadora, no sentido de ser uma educação que provoque mudanças positivas em todos os que se engajam neste processo, desde o estudante até a comunidade local e a região do mundo na qual se localiza.  Por fim, precisa ser responsável pelos recursos que consome perante todos esses stakeholders, entregando soluções às questões mais importantes enfrentadas pela sociedade.

 

O que diferencia uma universidade de classe mundial das demais?

Luciane Stallivieri: Uma universidade de classe mundial precisa ter entregas excelentes, no sentido de colaborar tanto para a pesquisa global, quanto para a qualidade acadêmica no mundo, além de ser vetor do desenvolvimento de sua região e de seu país, cumprindo assim com a sua responsabilidade social. Além disso, precisa atrair pessoas talentosas de todos os cantos do mundo, tanto estudantes, quanto professores, pesquisadores e gestores. Ela também deve apresentar soluções inovadoras aos problemas mais prementes da sociedade global. Tudo isso, no entanto, depende da existência de mecanismos de governança eficientes, de recursos financeiros e infraestrutura adequados, além de talentos, capital humano, para sustentar tais entregas. Sem um investimento consistente nessas frentes é mais difícil almejar uma universidade de classe mundial.

 

Como o processo de internacionalização pode contribuir no desempenho de qualidade das universidades do sul global em rankings e avaliações internacionais?

Luciane Stallivieri: A internacionalização abre as portas da universidade para o seu reconhecimento para além de seus próprios muros e fronteiras. A qualidade em pesquisa, por exemplo, depende de interação e colaboração entre pesquisadores de diferentes países por meio de parcerias e alianças estratégicas, que um processo de internacionalização viabiliza. A partir delas é possível elevar a qualidade da pesquisa, o volume da produção científica, seu impacto, socialização e abrangência do conhecimento produzido.

Vejo, no modelo Collaborative Online International Learning (Coil) uma excelente oportunidade de internacionalização para as universidades do sul global, na medida em que facilita a visibilidade da excelência do conhecimento produzido na região, bem como a inserção das instituições e dos pesquisadores, docentes e funcionários em redes internacionais que passarão a olhar o continente como um espaço de excelência também. Tudo isso aumenta a exigência sobre a produção do conhecimento e o compromisso da instituição com a qualidade, reiterando que a universidade precisa estar preparada quando inicia um movimento nesta direção.

Para aproveitar essa oportunidade trazida pela virtualização da internacionalização é preciso, no entanto, poder se comunicar nas línguas mais faladas na comunidade internacional (inglês, chinês, espanhol) e possuir competência digital para interação mediada por tecnologia, que também precisa estar amplamente disponível.

 

Quais as diferenças mais marcantes entre as universidades de classe mundial localizadas no sul global e seus pares do norte?

Luciane Stallivieri: Temos um espaço privilegiado de ensino na América Latina mas precisamos ser mais proativos. Para isso precisamos vencer algumas barreiras. Entre elas, a questão do acesso mais demorado ao conhecimento produzido em centro de excelência, em função dos resultados de pesquisas de ponta serem publicadas primeiro em outros países e em outras línguas. Nem todos têm a mesma facilidade de acesso. Além disso, temos dificuldade de receber estudantes internacionais por uma série de razões de infraestrutura, especialmente. Os nossos campi carecem de alojamentos adequados e suficientes para a comunidade internacional, bem como carece de investimentos permanentes em laboratórios e outros equipamentos essenciais para o ensino e a pesquisa de excelência.

As universidades privadas, que compõe a maior parte das instituições de ensino superior na América Latina, concentrando o maior número de matrículas, também são menos internacionalizadas e por isso ainda não desenvolveram uma cultura de captação de recursos internacionais, fundamental neste processo. Uma maneira relativamente simples de iniciar essa jornada é montar uma unidade de captação de recursos na universidade para monitorar editais do mundo todo, que pode estar localizada no departamento de internacionalização. Se a universidade tiver bons projetos a apresentar, certamente conseguirá atrair recursos por esse meio e usá-los como alavanca do processo de internacionalização e de garantia de qualidade.

 

Como as avaliações institucionais dos governos e agências de fomento conversam com rankings consultados por pais, alunos e a sociedade ao tratarem de qualidade das universidades?

Luciane Stallivieri: Não existe necessariamente uma conversa entre eles devido aos objetivos e características diferentes. No Brasil, temos um modelo exemplar de avaliação na pós-graduação, que precisaria cruzar com outros modelos usados por outros sistemas. Essa interação certamente beneficiaria o conjunto dos sistemas avaliativos pelo papel indutor desses instrumentos.

Os rankings, por outro lado, possuem finalidade distinta e em geral tem um foco mais restrito e limitado a dados quantificáveis. Do ponto de vista da internacionalização, as avaliações feitas pelos rankings mais importantes começaram a incluir o tema na sua coleta de informação a partir de 2010 apenas, e mesmo assim desconsideram os resultados de aprendizagem que são centrais nos benefícios obtidos com a internacionalização. Uma conversa entre os rankings e os diversos sistemas de avaliação institucional poderia ser benéfica até pelas suas diferenças para o aprimoramento dos dois tipos de instrumento.

 

Quais os desafios e oportunidades para as universidades brasileiras e latino-americanas de classe global neste contexto?

Luciane Stallivieri: Nunca houve tanto acesso à informação qualificada, às maiores autoridades mundiais nos mais diversos temas. A digitalização permitiu contato amplo e imediato com o conhecimento de qualidade, o que por si só é uma imensa oportunidade para a região.  A busca de alianças e parcerias também foi muito facilitada por esse fenômeno, bastando ter bons projetos para poder concorrer e acessar os recursos disponíveis para além de suas fronteiras geográficas.

Mas, existem também grandes desafios como a necessidade de gerir e de se capacitar para o processo de internacionalização, entendendo que é um meio na busca de excelência e qualidade, nunca um fim. Muitas instituições desconhecem as atividades internacionais de ensino, pesquisa e extensão em curso dentro de sua própria instituição. A gestão do conhecimento e da informação é o primeiro passo. É necessário conhecer em detalhe todas as interações em curso dentro da universidade, oferecendo dados qualificados e precisos aos gestores, aos rankings e aos sistemas de avaliação institucional.

Além disso, é essencial o investimento em pesquisa, o aumento da visibilidade e do impacto do conhecimento produzido e isso passa por publicar em outras línguas: em inglês e também chinês e em outras línguas asiáticas, por exemplo.  A parceria entre países da América Latina em pesquisa e ensino, aproveitando nosso contexto semelhante, inclusive em termos dos desafios enfrentados pelas nossas sociedades, é fundamental para fortalecer o espaço latino-americano de educação superior e aumentar nossa presença no contexto global de excelência em ensino e pesquisa.

 

Qual a importância de políticas nacionais e regionais de apoio à internacionalização na promoção da qualidade do sistema de Ensino Superior?

Luciane Stallivieri: Falta uma política nacional (no Brasil) e regional (na América Latina) que oriente esse processo e ofereça diretrizes claras para as instituições que buscam se internacionalizar. Sem isso o impacto sistêmico do processo se perde. Essa orientação é essencial não só no nível superior, mas também no Ensino Básico. Mais ainda em países com um sistema altamente complexo como é o caso brasileiro. Apenas para exemplificar, no Brasil existem aproximadamente 2600 IES, na Austrália, são mais ou menos 42 universidades.

Um país com um sistema desse tamanho e complexidade necessita ainda mais de políticas de internacionalização. No mínimo, é preciso discutir um documento orientador com conceitos, direcionamento e elementos mínimos de um processo de internacionalização, como o da Colômbia, da Finlândia, do Reino Unido, da Alemanha, por exemplo.

Claro que não é possível e nem desejável engessar as instituições num modelo único, em especial porque a melhor estratégia de internacionalização depende de características particulares de cada universidade tais como localização, vocação, áreas de excelência, entre outros. Mas todas as universidades podem se beneficiar de uma orientação das políticas ao tomarem suas decisões individuais e investirem nesse processo.

 

Como a IES pode se apropriar da proposta e das ferramentas de internacionalização do currículo disponíveis, em suas políticas institucionais? Como apoiar e incentivar a adesão de professores a esse processo?

Luciane Stallivieri: Começo pela segunda pergunta, trazendo os estudos da International Association of Universities (IAU) na Europa. A IAU, por exemplo, aponta como maior entrave à internacionalização a dificuldade de levar os professores a aderirem ao processo. Fica evidente que precisamos trabalhar fortemente com o corpo docente de forma sistemática e estruturada. E isso começa com mecanismos institucionais como o Plano e o Planejamento Estratégico da Internacionalização, devidamente vinculados a objetivos quantificáveis. No centro desses instrumentos é preciso contemplar ações para professores, tais como bolsas de produtividade para colaboração internacional, seminários de sensibilização e capacitação sobre o tema, entre outras.

O departamento de Internacionalização da universidade deve assumir a orquestração de tudo isso, funcionando não apenas como um departamento a mais na instituição, mas como o indutor de um comportamento em toda comunidade acadêmica. Não existe uma única fórmula para internacionalização. Cada IES precisa buscar o seu modelo, rompendo com a atitude que ainda hoje existe na América Latina de que sermos passivos em relação à internacionalização. A falta de documentos nacionais e regionais orientadores pode ser suprida pela leitura e uso de materiais sobre a internacionalização do Ensino Superior produzidos com periodicidade pela OCDE, pelo Banco Mundial e a Unesco, entre outros organismos internacionais que se debruçam sobre a questão. São fontes de inspiração que podem servir como bases orientativas para a produção e desenvolvimento de modelos próprios da internacionalização latino-americana e brasileira.

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